O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou ontem que teve mais
medo de perder a voz do que de morrer após a descoberta do câncer na
laringe. "Se eu perdesse a voz, estaria morto."
Um dia depois da notícia de que o tumor desapareceu, ele recebeu a Folha para uma entrevista exclusiva num quarto do hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde faz sessões de fonoaudiologia.
Lula comparou a uma "bomba de Hiroshima" o tratamento que fez, com sessões de químio e radioterapia.
Ele emocionou-se ao lembrar da luta do vice-presidente José Alencar
(1931-2011), que morreu de câncer há exatamente um ano. "Hoje é que eu
tenho noção do que o Zé Alencar passou."
Quase 16 quilos mais magro e com a voz um pouco mais rouca que o normal,
o ex-presidente ainda sente dor na garganta e diz que sonha com o dia
em que poderá comer pão "com a casca dura".
A entrevista foi acompanhada por Roberto Kalil, seu médico pessoal e
"guru", pelo fotógrafo Ricardo Stuckert e pelo presidente do Instituto
Lula, Paulo Okamotto.
Folha - Como o sr. está?
Luiz Inácio Lula da Silva - O câncer está resolvido porque não
existe mais aqui [aponta para a garganta]. Mas eu tenho que fazer
tratamento por um tempo ainda. Tenho que manter a disciplina para evitar
que aconteça alguma coisa. Aprendi que tanto quanto os médicos, tanto
quanto as injeções, tanto quanto a quimioterapia, tanto quanto a
radioterapia, a disciplina no tratamento, cumprir as normas que tem que
cumprir, fazer as coisas corretamente, são condições básicas para a
gente poder curar o câncer.
Foi difícil abrir mão...
Hoje é que eu tenho noção do que o Zé Alencar passou. [Fica com a voz
embargada e os olhos marejados]. Eu, que convivi com ele tanto tempo,
não tinha noção do que ele passou. A gente não sabe o que é pior, se a
quimioterapia ou a radioterapia. Uns dizem que é a químio, outros que é a
rádio. Para mim, os dois são um desastre. Um é uma bomba de Hiroshima
e, o outro, eu nem sei que bomba é. Os dois são arrasadores.
O sr. teve medo?
A palavra correta não é medo. É um processo difícil de evitar, não tem
uma única causa. As pessoas falam que é o cigarro [que causa a doença],
falam que é um monte de coisa que dá, mas tá cheio de criancinha que
nasce com câncer e não fuma.
Qual é a palavra correta?
A palavra correta... É uma doença que eu acho que é a mais delicada de
todas. É avassaladora. Eu vim aqui com um tumor de 3 cm e de repente
estava recebendo uma Hiroshima dentro de mim. [Em alguns momentos] Eu
preferiria entrar em coma.
Kalil [interrompendo] - Pelo amor de Deus, presidente!
Em coma?
Eu falei para o Kalil: eu preferiria me trancar num freezer como um
carpaccio. Sabe como se faz carpaccio? Você pega o contrafilé, tira a
gordura, enrola a carne, amarra o barbante e coloca o contrafilé no
freezer e, quando ele está congelado, você corta e faz o carpaccio. A
minha vontade era me trancar no freezer e ficar congelado até...
Sentia dor?
Náusea, náusea. A boca não suporta nada, nada, nada, nada. A gente
ouvindo as pessoas [que passam por um tratamento contra o câncer]
falarem não tem dimensão do que estão sentindo.
Teve medo de morrer?
Eu tinha mais preocupação de perder a voz do que de morrer. Se eu
perdesse a voz, estaria morto. Tem gente que fala que não tem medo de
morrer, mas eu tenho. Se eu souber que a morte está na China, eu vou
para a Bolívia.
O sr. acredita que existe alguma coisa depois da morte?
Eu acredito. Eu acredito que entre a vida que a gente conhece [e a
morte] há muita coisa que ainda não compreendemos. Sou um homem que
acredita que existam outras coisas que determinam a passagem nossa pela
Terra. Sou um homem que acredita, que tem muita fé.
Mesmo assim, teve um medo grande?
Medo, medo, eu vivo com medo. Eu sou um medroso. Não venha me dizer:
'Não tenha medo da morte'. Porque eu me quero vivo. Uma vez ouvi meu
amigo [o escritor] Ariano Suassuna dizer que ele chama a morte de
Caetana e que, quando vê a Caetana, ele corre dela. Eu não quero ver a
Caetana nem...
Qual foi o pior momento neste processo?
Foi quando eu soube. Vim trazer a minha mulher para um exame e a Marisa e
o Kalil armaram uma arapuca e me colocaram no tal de PET [aparelho que
rastreia tumores]. Eu tinha passado pelo otorrino, o otorrino tinha
visto a minha garganta inflamada.
Eu já estava há 40 dias com a garganta inflamada e cada pessoa que eu
encontrava me dava uma pastilha No Brasil, as pessoas têm o hábito de
dar pastilha para a gente. Não tinha uma pessoa que eu encontrasse que
não me desse uma pastilha: 'Essa aqui é boa, maravilhosa, essa é
melhor'. Eu já tava cansado de chupar pastilha.
No dia do meu aniversário, eu disse: 'Kalil, vou levar a Marisa para
fazer uns exames'. E viemos para cá. O rapaz fez o exame, fez a
endoscopia, disse que estava muito inflamada a minha garganta. Aí
inventaram essa história de eu fazer o PET. Eu não queria fazer, eu não
tinha nada, pô. Aí eu fui fazer depois de xingar muito o Kalil.
Depois, fui para uma sala onde estava o Kalil e mais uns dez médicos. Eu
senti um clima meio estranho. O Kalil estava com uma cara meio de
chorar. Aí eu falei: 'Sabe de uma coisa? Vocês já foram na casa de
alguém para comunicar a morte? Eu já fui. Então falem o que aconteceu,
digam!' Aí me contaram que eu tinha um tumor. E eu disse: 'Então vamos
tratar'.
Existia a possibilidade de operar o tumor, em vez de fazer o tratamento que o senhor fez.
Na realidade, isso nem foi discutido. Eles chegaram à conclusão de que
tinha que fazer o que tinha que fazer para destruir o bicho
[quimioterapia seguida de radioterapia], que era o mais certo. Eu disse:
'Vamos fazer'.
O meu papel, então, a partir dessa decisão, era cumprir, era obedecer,
me submeter a todos os caprichos que a medicina exigia. Porque eu sabia
que era assim. Não pode vacilar. Você não pode [dizer]: 'Hoje eu não
quero, não tô com vontade'.
O senhor rezava, buscou ajuda espiritual?
Eu rezo muito, eu rezo muito, independentemente de estar doente.
Fez alguma promessa?
Não.
Existia também uma informação de que o senhor procurou ajuda do médium João de Deus.
Eu não procurei porque não conhecia as pessoas, mas várias pessoas me
procuraram e eu sou muito agradecido. Várias pessoas vieram aqui, ainda
hoje há várias pessoas me procurando. E todas as que me procurarem eu
vou atender, conversar, porque eu acho que isso ajuda.
E como será a vida do sr. a partir de agora? Vai seguir com suas palestras?
Eu não quero tomar nenhuma decisão maluca. Eu ainda estou com a garganta
muito dolorida, não posso dizer que estou normal porque, para comer,
ainda dói.
Mas acho que entramos na fase em que, daqui a alguns dias, eu vou
acordar e vou poder comer pão, sem fazer sopinha. Vou poder comer pão
com aquela casca dura. Vai ser o dia!
Eu vou tomando as decisões com o tempo. Uma coisa eu tenho a certeza: eu
não farei a agenda que já fiz. Nunca mais eu irei fazer a agenda
alucinante e maluca que eu fiz nesses dez meses desde que eu deixei o
governo. O que eu trabalhei entre março e outubro de 2011... Nós
visitamos 30 e poucos países.
Eu não tenho mais vontade para isso, eu não vou fazer isso. Vou fazer
menos coisas, com mais qualidade, participar das eleições de forma mais
seletiva, ajudar a minha companheira Dilma [Rousseff] de forma mais
seletiva, naquilo que ela entender que eu possa ajudar. Vou voltar mais
tranquilo. O mundo não acaba na semana que vem.
Quando é que o senhor começa a participar da campanha de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo?
Eu acho o Fernando Haddad o melhor candidato. São Paulo não pode
continuar na mesmice de tantas e tantas décadas. Eu acho que ele vai
surpreender muita gente. E desse negócio de surpreender muita gente eu
sei. Muita gente dizia que a Dilma era um poste, que eu estava louco,
que eu não entendia de política. Com o Fernando Haddad será a mesma
coisa.
O senhor vai pedir à senadora Marta Suplicy para entrar na campanha dele também?
Eu acho que a Marta é uma militante política, ela está na campanha.
Tem falado com ela?
Falei com ela faz uns 15 dias. Ela me ligou para saber da saúde. Eu disse que, quando eu sarar, a gente vai conversar um monte.
E em 2014? O senhor volta a disputar a Presidência?
Para mim não tem 2014, 2018, 2022. Deixa eu contar uma coisa para vocês:
eu acabei de deixar a Presidência da República, tem apenas um ano e
quatro meses que eu deixei a Presidência.
Poucos brasileiros tiveram a sorte de passar pela Presidência da forma
exitosa com que eu passei. E repetir o que eu fiz não será tarefa fácil.
Eu sempre terei como adversário eu mesmo. Para que é que eu vou
procurar sarna para me coçar se eu posso ajudar outras pessoas, posso
trabalhar para outras pessoas?
E depois é o seguinte: você precisa esperar o tempo passar. Essas coisas
você não decide agora. Um belo dia você não quer uma coisa, de repente
se apresenta uma chance, você participa.
Mas a minha vontade agora é ajudar a minha companheira a ser a melhor
presidenta, a trabalhar a reeleição dela. Eu digo sempre o seguinte: a
Dilma só não será candidata à reeleição se ela não quiser. É direito
dela, constitucional, de ser candidata a presidente da República. E eu
terei imenso prazer de ser cabo eleitoral.
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