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sexta-feira, 30 de março de 2012

Entrevista: Lula

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou ontem que teve mais medo de perder a voz do que de morrer após a descoberta do câncer na laringe. "Se eu perdesse a voz, estaria morto."

Um dia depois da notícia de que o tumor desapareceu, ele recebeu a Folha para uma entrevista exclusiva num quarto do hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde faz sessões de fonoaudiologia.

Lula comparou a uma "bomba de Hiroshima" o tratamento que fez, com sessões de químio e radioterapia.

Ele emocionou-se ao lembrar da luta do vice-presidente José Alencar (1931-2011), que morreu de câncer há exatamente um ano. "Hoje é que eu tenho noção do que o Zé Alencar passou."

Quase 16 quilos mais magro e com a voz um pouco mais rouca que o normal, o ex-presidente ainda sente dor na garganta e diz que sonha com o dia em que poderá comer pão "com a casca dura".

A entrevista foi acompanhada por Roberto Kalil, seu médico pessoal e "guru", pelo fotógrafo Ricardo Stuckert e pelo presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto.


Folha - Como o sr. está?
Luiz Inácio Lula da Silva - O câncer está resolvido porque não existe mais aqui [aponta para a garganta]. Mas eu tenho que fazer tratamento por um tempo ainda. Tenho que manter a disciplina para evitar que aconteça alguma coisa. Aprendi que tanto quanto os médicos, tanto quanto as injeções, tanto quanto a quimioterapia, tanto quanto a radioterapia, a disciplina no tratamento, cumprir as normas que tem que cumprir, fazer as coisas corretamente, são condições básicas para a gente poder curar o câncer.

Foi difícil abrir mão...
Hoje é que eu tenho noção do que o Zé Alencar passou. [Fica com a voz embargada e os olhos marejados]. Eu, que convivi com ele tanto tempo, não tinha noção do que ele passou. A gente não sabe o que é pior, se a quimioterapia ou a radioterapia. Uns dizem que é a químio, outros que é a rádio. Para mim, os dois são um desastre. Um é uma bomba de Hiroshima e, o outro, eu nem sei que bomba é. Os dois são arrasadores.

O sr. teve medo?
A palavra correta não é medo. É um processo difícil de evitar, não tem uma única causa. As pessoas falam que é o cigarro [que causa a doença], falam que é um monte de coisa que dá, mas tá cheio de criancinha que nasce com câncer e não fuma.
Qual é a palavra correta?
A palavra correta... É uma doença que eu acho que é a mais delicada de todas. É avassaladora. Eu vim aqui com um tumor de 3 cm e de repente estava recebendo uma Hiroshima dentro de mim. [Em alguns momentos] Eu preferiria entrar em coma.

Kalil [interrompendo] - Pelo amor de Deus, presidente!

Em coma?
Eu falei para o Kalil: eu preferiria me trancar num freezer como um carpaccio. Sabe como se faz carpaccio? Você pega o contrafilé, tira a gordura, enrola a carne, amarra o barbante e coloca o contrafilé no freezer e, quando ele está congelado, você corta e faz o carpaccio. A minha vontade era me trancar no freezer e ficar congelado até...

Sentia dor?
Náusea, náusea. A boca não suporta nada, nada, nada, nada. A gente ouvindo as pessoas [que passam por um tratamento contra o câncer] falarem não tem dimensão do que estão sentindo.

Teve medo de morrer?
Eu tinha mais preocupação de perder a voz do que de morrer. Se eu perdesse a voz, estaria morto. Tem gente que fala que não tem medo de morrer, mas eu tenho. Se eu souber que a morte está na China, eu vou para a Bolívia.

O sr. acredita que existe alguma coisa depois da morte?
Eu acredito. Eu acredito que entre a vida que a gente conhece [e a morte] há muita coisa que ainda não compreendemos. Sou um homem que acredita que existam outras coisas que determinam a passagem nossa pela Terra. Sou um homem que acredita, que tem muita fé.

Mesmo assim, teve um medo grande?
Medo, medo, eu vivo com medo. Eu sou um medroso. Não venha me dizer: 'Não tenha medo da morte'. Porque eu me quero vivo. Uma vez ouvi meu amigo [o escritor] Ariano Suassuna dizer que ele chama a morte de Caetana e que, quando vê a Caetana, ele corre dela. Eu não quero ver a Caetana nem...

Qual foi o pior momento neste processo?
Foi quando eu soube. Vim trazer a minha mulher para um exame e a Marisa e o Kalil armaram uma arapuca e me colocaram no tal de PET [aparelho que rastreia tumores]. Eu tinha passado pelo otorrino, o otorrino tinha visto a minha garganta inflamada.
Eu já estava há 40 dias com a garganta inflamada e cada pessoa que eu encontrava me dava uma pastilha No Brasil, as pessoas têm o hábito de dar pastilha para a gente. Não tinha uma pessoa que eu encontrasse que não me desse uma pastilha: 'Essa aqui é boa, maravilhosa, essa é melhor'. Eu já tava cansado de chupar pastilha.
No dia do meu aniversário, eu disse: 'Kalil, vou levar a Marisa para fazer uns exames'. E viemos para cá. O rapaz fez o exame, fez a endoscopia, disse que estava muito inflamada a minha garganta. Aí inventaram essa história de eu fazer o PET. Eu não queria fazer, eu não tinha nada, pô. Aí eu fui fazer depois de xingar muito o Kalil.
Depois, fui para uma sala onde estava o Kalil e mais uns dez médicos. Eu senti um clima meio estranho. O Kalil estava com uma cara meio de chorar. Aí eu falei: 'Sabe de uma coisa? Vocês já foram na casa de alguém para comunicar a morte? Eu já fui. Então falem o que aconteceu, digam!' Aí me contaram que eu tinha um tumor. E eu disse: 'Então vamos tratar'.

Existia a possibilidade de operar o tumor, em vez de fazer o tratamento que o senhor fez.
Na realidade, isso nem foi discutido. Eles chegaram à conclusão de que tinha que fazer o que tinha que fazer para destruir o bicho [quimioterapia seguida de radioterapia], que era o mais certo. Eu disse: 'Vamos fazer'.
O meu papel, então, a partir dessa decisão, era cumprir, era obedecer, me submeter a todos os caprichos que a medicina exigia. Porque eu sabia que era assim. Não pode vacilar. Você não pode [dizer]: 'Hoje eu não quero, não tô com vontade'.

O senhor rezava, buscou ajuda espiritual?
Eu rezo muito, eu rezo muito, independentemente de estar doente.

Fez alguma promessa?
Não.

Existia também uma informação de que o senhor procurou ajuda do médium João de Deus.
Eu não procurei porque não conhecia as pessoas, mas várias pessoas me procuraram e eu sou muito agradecido. Várias pessoas vieram aqui, ainda hoje há várias pessoas me procurando. E todas as que me procurarem eu vou atender, conversar, porque eu acho que isso ajuda.

E como será a vida do sr. a partir de agora? Vai seguir com suas palestras?
Eu não quero tomar nenhuma decisão maluca. Eu ainda estou com a garganta muito dolorida, não posso dizer que estou normal porque, para comer, ainda dói.
Mas acho que entramos na fase em que, daqui a alguns dias, eu vou acordar e vou poder comer pão, sem fazer sopinha. Vou poder comer pão com aquela casca dura. Vai ser o dia!
Eu vou tomando as decisões com o tempo. Uma coisa eu tenho a certeza: eu não farei a agenda que já fiz. Nunca mais eu irei fazer a agenda alucinante e maluca que eu fiz nesses dez meses desde que eu deixei o governo. O que eu trabalhei entre março e outubro de 2011... Nós visitamos 30 e poucos países.
Eu não tenho mais vontade para isso, eu não vou fazer isso. Vou fazer menos coisas, com mais qualidade, participar das eleições de forma mais seletiva, ajudar a minha companheira Dilma [Rousseff] de forma mais seletiva, naquilo que ela entender que eu possa ajudar. Vou voltar mais tranquilo. O mundo não acaba na semana que vem.

Quando é que o senhor começa a participar da campanha de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo?
Eu acho o Fernando Haddad o melhor candidato. São Paulo não pode continuar na mesmice de tantas e tantas décadas. Eu acho que ele vai surpreender muita gente. E desse negócio de surpreender muita gente eu sei. Muita gente dizia que a Dilma era um poste, que eu estava louco, que eu não entendia de política. Com o Fernando Haddad será a mesma coisa.

O senhor vai pedir à senadora Marta Suplicy para entrar na campanha dele também?
Eu acho que a Marta é uma militante política, ela está na campanha.

Tem falado com ela?
Falei com ela faz uns 15 dias. Ela me ligou para saber da saúde. Eu disse que, quando eu sarar, a gente vai conversar um monte.

E em 2014? O senhor volta a disputar a Presidência?
Para mim não tem 2014, 2018, 2022. Deixa eu contar uma coisa para vocês: eu acabei de deixar a Presidência da República, tem apenas um ano e quatro meses que eu deixei a Presidência.
Poucos brasileiros tiveram a sorte de passar pela Presidência da forma exitosa com que eu passei. E repetir o que eu fiz não será tarefa fácil. Eu sempre terei como adversário eu mesmo. Para que é que eu vou procurar sarna para me coçar se eu posso ajudar outras pessoas, posso trabalhar para outras pessoas?
E depois é o seguinte: você precisa esperar o tempo passar. Essas coisas você não decide agora. Um belo dia você não quer uma coisa, de repente se apresenta uma chance, você participa.
Mas a minha vontade agora é ajudar a minha companheira a ser a melhor presidenta, a trabalhar a reeleição dela. Eu digo sempre o seguinte: a Dilma só não será candidata à reeleição se ela não quiser. É direito dela, constitucional, de ser candidata a presidente da República. E eu terei imenso prazer de ser cabo eleitoral.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Ainda Alencar: o câncer e a saúde pública.

A morte de José Alencar ainda merece uma última reflexão. Trata do seu comportamento frente a uma doença tão estigmatizada quanto o câncer e do privilégio que teve por meio dos mais avançados e caros tratamentos. Sem dúvida, isso tudo precisa ser comentado, especialmente por ser o câncer uma doença pouco discutida e por estarmos vivendo uma grave crise no SUS (Sistema único de saúde).  Para tanto, O Xiquexiquense se valerá de trechos de 3 textos de especialistas no assunto.

ALENCAR CONVIDOU O PAÍS A ROMPER ESTIGMA QUE RODEIA O CÂNCER
(Luciana Holtz, presidente do ONCOGUIA, em Folha de SP de 31/03/11)

Ao se assumir com dor e não se encerrar em torno disso, ao viver sempre que possível o seu dia com normalidade, ao transformar por muitas vezes o quarto do hospital em seu ambiente de trabalho, José Alencar convidou o país a quebrar o estigma que rodeia o câncer e amputa a vontade de vida de milhares de brasileiros.

Cada internação e cirurgia anunciada, além de comover e mobilizar os brasileiros pela determinação de Alencar à vida, colocava o tema do câncer em espaço de discussão.

Quando a imprensa noticiava a prescrição de novo medicamento ao ex-vice-presidente, a chance de cura renovava-se também para outros milhares de brasileiros.

Quando se divulgava a disponibilidade no Brasil do tratamento de excelência que recebeu Alencar, abordavam-se os avanços do país nessa área e discutia-se o imenso caminho que teremos de avançar para oferecer a mesma atenção para quaisquer pacientes.

TRIBUTO A UM PACIENTE
(Raul Cutait, chefe da equipe de Alencar, Folha de SP de 31/03/11)

Como na "Canção do Tamoio", de Gonçalves Dias, muitos logo entendem que "A vida é combate,/ Que os fracos abate,/ Que os fortes, os bravos/ Só pode exaltar".

No Brasil, acho que Alencar foi o exemplo público máximo de comportamento aberto, dividindo sua doença e seus sentimentos com a população em geral.

Foi antecedido por Mário Covas, que, quando governador, chegou a chorar em entrevista coletiva enquanto falava de si e de sua doença; por Ana Maria Braga, que, com sua capacidade de comunicação, mostrou grande dignidade ao falar de sua doença e de como a enfrentava; pela atriz Patrícia Pillar, que aumentou o time das pessoas que expuseram sua doença e ajudaram os brasileiros a entender e a conviver com o câncer.

Diga-se de passagem que, no presente, é possível curar mais de 50% de todos os casos diagnosticados de câncer, bem como ampliar o tempo de sobrevida, com qualidade e dignidade, daqueles que têm doenças incuráveis.

Na sua infindável procura pelo significado da vida, o homem usa explicações racionais, emocionais, científicas e religiosas.

Na busca de sentir que a vida valeu a pena, até mesmo sem entendê-la em sua plenitude, tenta conquistar amor, felicidade, paz, saúde, sucesso e tantas outras coisas.

Para mim, o José chegou lá!

O QUE NOS ENSINOU JOSÉ ALENCAR
(José Gomes Temporão, ministro da saúde no gov. Lula, Folha de SP de 30/03/11)

Na luta contra o câncer, nosso Zé foi atendido pelos melhores médicos, operado nos melhores hospitais, teve acesso a medicamentos de alto custo e até mesmo experimentais. Tal padrão de qualidade dificilmente está acessível a tempo e hora ao brasileiro comum.

Esse fato era comentado com frequência pelo vice-presidente, mostrando com clareza seu grau de consciência sobre essa situação de exceção. O subfinanciamento crônico que asfixia o Sistema Único de Saúde (SUS) desde sua origem, há pouco mais de 20 anos, reserva apenas para os muito ricos o acesso pleno e ilimitado a todos os avanços da ciência médica.

A insuficiência de recursos financeiros expõe cotidianamente ao desamparo e a riscos a grande maioria dos brasileiros, que depende exclusivamente da saúde pública. E expõe também a riscos e a constrangimentos eticamente dolorosos os médicos e os demais profissionais de saúde.

Entretanto, nossa Constituição assegura a todos os brasileiros o direito à saúde, em seu sentido mais ampliado, e atribui ao Estado a responsabilidade pela garantia do acesso universal. A morte de José Alencar, portanto, também nos serve de alerta para a persistência de iniquidades intoleráveis no acesso ao direito à saúde. Que seja para todos. Sem distinção.