sábado, 21 de setembro de 2013

O homem que inventou o pré-sal levava mapa de campos da bacia de Santos no bolso

Oito anos depois de aposentado, Guilherme Estrella foi chamado de volta ao trabalho. Dois anos depois da posse do presidente Lula, levava ao presidente os mapas dos gigantescos reservatórios do pré-sal brasileiro, concentrado na bacia de Santos. Virou o "pai do pré-sal" para Lula. Cotado para presidir a PPSA, que vai administrar os contratos de partilha do pré-sal, ele diz não querer nem pensar na possibilidade.

*

Nasci durante a Segunda Guerra, justamente a responsável por fazer da geologia a ciência de maior crescimento na época. Os submarinos alemães se escondiam em formações geológicas em frente aos EUA, daí a necessidade de conhecer essa ciência.

Sou de uma família classe média da Ilha do Governador, zona norte do Rio. Vivia de frente para a baía de Guanabara, que não era o esgoto que é hoje. Morávamos na Lagoa, na zona sul, mas meu pai reclamava do barulho da obra do bonde e nos mudamos.

Fui o geólogo descobridor de um dos maiores poços da bacia do Recôncavo, Miranga, no interior da Bahia, que produz até hoje. A Petrobras produzia 100 mil barris por dia. Em 1966 fiz um levantamento de Alagoas até Vitória e encontrei formações favoráveis a muito petróleo.

Tinha uma frase famosa, do geólogo americano Walter Link, de que o petróleo no Brasil era no mar, e não em terra. Com os primeiros dados, foi dada a autorização para contratar sonda e perfurar no mar.

Eu vivia no interior da Bahia e nem via os movimentos políticos, não participava de nada, mas sabia que os governos militares sempre privilegiaram a Petrobras.
A empresa nunca foi uma empresa do governo, mas de governo, seja qual for.

Na época do Geisel [presidente Ernesto Geisel, 1974-1979] fizemos a primeira perfuração no mar do Espírito Santo, no campo de Guaricema. Os testes indicaram óleo, mas subcomercial. Conta-se que Geisel não aceitou e disse que ia produzir de qualquer maneira, e acabou sendo a primeira descoberta relevante do Brasil.

Descobrimos assim que as simulações que eram feitas antes estavam erradas.

No início dos anos 1970 eram produzidos entre 5.000 e 10 mil barris por dia no mar.

Nessa época fundaram a Braspetro [1972], durante a crise do petróleo, porque os países fornecedores exigiam que os compradores investissem onde compravam, para achar mais petróleo. Faziam isso países como Argélia, Egito, Iraque, Irã e Líbia, que vendiam para o Brasil.

Fui trabalhar no Iraque em 1976 e descobrimos um dos maiores campos do mundo, Majnoon, com 50 bilhões de barris de reservas.

O campo ficava perto do Irã e não podíamos queimar o óleo do teste de formação de poço. Tive que abrir uma bacia enorme no deserto para colocar o óleo.

Mas a Petrobras teve que devolver o campo. O governo nos chamou e disse que grandes campos não faziam parte da política de permitir a operação de estrangeiras no país, que deviam apenas complementar a produção.

A Petrobras foi indenizada direitinho e algumas empresas brasileiras também foram beneficiadas. A Mendes Júnior foi construir estrada de ferro, a Sadia entrou no mercado lá e passamos a exportar Passats para lá.

Voltei ao Brasil em 1978 e fui trabalhar na bacia do Espírito Santo. A bacia de Campos já produzia mais que as outras, mas é um estigma, eu nunca trabalhei na bacia de Campos. Vimos que o petróleo no Espírito Santo estava mais embaixo do que previra o Cenpes, centro de pesquisa da Petrobras.

Perfurar mais fundo foi uma dica que veio de um geólogo franco-americano que trabalhava na Chevron. Ninguém vende uma informação dessa, ele nunca ganhou um tostão por isso.
Fui para o Cenpes e, em 1982, assumi a superintendência. Nessa época já se falava sobre a teoria da separação das placas tectônicas dos continentes sul-americano e africano, que levaram à formação dos reservatórios similares em ambas as costas, mas não havia tecnologia para pesquisar isso.

No Cenpes elegemos um colega para uma vaga importante, mas a diretoria vetou porque ele era presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras. Eu pedi demissão, não aceitei. Isso era 1995, a ditadura já tinha acabado.

Minha esposa morrera um mês antes. Fui morar em Friburgo [região serrana do Rio], casei de novo, entrei para o PT. Fui eleito presidente porque era único com tempo e dinheiro. E também porque a outra chapa perdeu prazo para se habilitar.

Quando Lula ganhou em 2002 fizemos a maior festa. Recebi ligações dizendo que se falava em meu nome para voltar à Petrobras. Recebi um convite do José Eduardo Dutra [presidente da empresa] e voltei.

Quando cheguei lá, não encontrei uma empresa de petróleo, mas uma instituição financeira que investia no setor de petróleo. Tinham acabado com os cursos fora, com as viagens para seminários. Estavam concentrados apenas na bacia de Campos, fazendo caixa, sem investir.

Começamos a expansão. E no primeiro leilão de áreas de petróleo eu vi que a coisa era séria. Quando perdi o primeiro bloco para a Devon, que colocou 100% de conteúdo nacional, a então ministra Dilma Rousseff me ligou cinco minutos depois e disse: "Soube que você perdeu um bloco, isso não vai se repetir, está entendido?".

E claro que não perdi mais nenhum. Ali eu senti que a Petrobras ia reassumir a hegemonia do setor de petróleo no Brasil.

No final de 2005, o gerente-executivo Mario Carminatti me trouxe uns mapas da "picanha azul", como ficou conhecida a área do pré-sal da bacia de Santos. Fui ao Gabrielli [José Sergio Gabrielli, então presidente da Petrobras] e ele me levou para a Dilma, que me levou ao Lula.

Foi aí que começamos a fazer o marco regulatório, eu era o único geólogo naquelas reuniões do marco. O maior embate foi a Petrobras como operadora única, mas só inova quem faz, e decidimos manter assim.

O Lula me chamava toda hora lá em Brasília para mostrar a apresentação de como era o pré-sal, já andava com o pendrive no bolso.

Fiquei muito orgulhoso de participar do marco regulatório, mas vi que era a hora de parar. Estava com 70 anos. Trabalhava de 7h às 21h, morava em uma apart-hotel no Leblon, estava separado.

Ocorreu uma revolução tecnológica, a Petrobras estava completamente diferente de quando cheguei.

Ficou claro para mim que não dava mais, tinha que deixar a turma nova entrar.

Muita empresa me chamou para participar do conselho de administração, mas não acho certo, possuo informações confidenciais da companhia, é difícil trabalhar numa concorrente. Não me arrependo. Estou cuidando do meu acervo, das minhas coleções em Friburgo, das plantas.



terça-feira, 3 de setembro de 2013

Orgulhosa, França tenta entender seu declínio

Por STEVEN ERLANGER, em The New York Times

PARIS - Toda a Europa está falando na "questão francesa": será que o governo socialista do presidente François Hollande conseguirá reverter o lento declínio da França e impedir que o país escorregue definitivamente para a segunda divisão europeia?

O que está em jogo é se um sistema social-democrata, que há décadas se orgulha de servir como modelo para a oferta de um padrão de vida estável e elevado para seus cidadãos, será capaz de sobreviver à combinação de globalização, envelhecimento populacional e agudos cortes fiscais.

Pessoas próximas a Hollande dizem que ele está ciente do que é preciso fazer para cortar gastos e reduzir regulamentações que oneram a economia. Amigos da França, em especial a Alemanha, temem que Hollande possa simplesmente carecer de coragem política para confrontar seus aliados e tomar as decisões necessárias.

Mudar qualquer país é difícil. Mas o desafio na França parece especialmente árduo, em parte porque a vida francesa ainda é muito confortável para muita gente e o dia do juízo parece distante, especialmente para os sindicatos nacionais, pequenos, mas poderosos.

Os franceses têm um justificável orgulho do seu modelo social. A saúde pública e as pensões são boas, muitos franceses se aposentam com 60 anos ou menos, férias de cinco ou seis semanas são a norma e os trabalhadores com empregos em tempo integral têm jornadas semanais de 35 horas e proteções contra demissões.

Mas, numa economia mundial mais competitiva, a questão não é se o modelo social francês é bom, mas se os franceses têm condições de continuar a bancá-lo. Com base nas atuais tendências, a resposta é claramente não ou, pelo menos, não sem mudanças estruturais significativas -em pensões, impostos, benefícios sociais, regras trabalhistas e expectativas.

Mas o Partido Socialista, de Hollande, e a esquerda francesa mais aguerrida não parecem captar a famosa sacada do sobrinho do príncipe em "O Gattopardo", famoso romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa sobre turbulências sociais, segundo quem "é preciso que tudo mude para que tudo continue igual".

Às vezes, conversando com políticos e trabalhadores franceses, há a sensação de que todos eles se consideram revolucionários e membros de comunas -mas, ao mesmo tempo, como a extrema direita, eles desejam fixar o conforto do conhecido.

Em maio de 1968, alunos da Universidade Paris-Nanterre começaram o que julgavam ser uma revolução. Estudantes franceses de gravata e meia soquete atiravam paralelepípedos na polícia e exigiam que o esclerosado sistema do pós-guerra fosse mudado.

Hoje, em Nanterre, alunos preocupados em conseguir empregos e não perder os benefícios estatais exigem que nada mude. Para Raphaël Glucksmann, que liderou uma greve quando estava no colégio, em 1995, os membros da sua geração se sentem nostálgicos em relação a seus pais rebeldes, mas não têm estômago para arrumar briga em tempos difíceis.

"Os jovens marcham para rejeitar todas as reformas", disse ele. "Não vemos alternativas. Somos uma geração sem atitude."

Os socialistas se tornaram um partido conservador, tentando desesperadamente preservar as vitórias do último século.

Mas os sinais de alerta estão por toda parte: o desemprego na França, especialmente entre jovens, está em nível recorde. O crescimento é lento em comparação ao da Alemanha, Reino Unido, EUA ou Ásia. Os gastos públicos representam quase 57% do PIB, maior índice entre os países industrializados. Os aumentos reais de salários superam o aumento da produtividade. A dívida nacional ultrapassa 90% do PIB.

Em Amiens, no norte da França, a Goodyear mantém duas fábricas de pneus. Os empregados de uma delas aceitaram relutantemente mudar as escalas de trabalho, preservando sua fábrica. Os operários da outra rejeitaram a opção, e a Goodyear está tentando fechar a unidade, deixando mais gente sem trabalho.

Há um amplo consenso de que só a esquerda poderá promover uma verdadeira renovação. Mas isso só poderá acontecer se Hollande, que tem maioria parlamentar, estiver disposto a confrontar seu próprio partido em nome do futuro.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Martin Luther King: discurso faz 50 anos

A história nos lembra do discurso, da multidão e do protesto pacífico. Mas nos bastidores, a famosa manifestação liderada pelo reverendo Martin Luther King Jr. em Washington, em 1963, provocou suspeitas, ansiedade e receio na Casa Branca de que o dia terminasse em violência.

Em todo o país, uma onda de protestos havia se espalhado após semanas de disputas raciais em Birmingham, no Estado do Alabama, onde cães policiais feriram manifestantes e potentes jatos de água foram usados em crianças.

Entre maio e o fim de agosto de 1963, houve 1.340 manifestações em mais de 200 cidades. Algumas aconteceram em comunidades por muito tempo divididas por questões raciais. Outras nunca haviam tido episódios de violência.

A aleatoriedade dos tumultos fez com que fossem ainda mais assustadores para as autoridades. Com 200 mil manifestantes prestes a se reunir na capital dos Estados Unidos, o governo tinha medo de que Washington testemunhasse o mesmo caos e desordem.

Para o reverendo Martin Luther King Jr., o líder não-declarado do movimento pelos direitos civis, os acontecimentos do início do verão americano haviam transformado a luta pela igualdade racial do que ele chamava de "protesto negro" em uma "revolução negra". Os Estados Unidos, segundo ele, tinham chegado a um "ponto de explosão".

Mas as vozes da ansiedade também se fizeram ouvir dentro da administração Kennedy.

"Assuntos que não se resolvam com justiça e equilíbrio, cedo ou tarde serão resolvidos pela força e pela violência", alertou o vice-presidente Lyndon Baines Johnson. O único conselheiro negro do presidente, Louis Martin, também alertou para uma possível confusão iminente.

"O ritmo acelerado da inquietação dos negros", disse ele a Kennedy, em particular, "pode provocar o estado mais crítico das relações raciais desde a Guerra Civil". Durante uma reunião tensa na Casa Branca em maio, o procurador-geral Robert Kennedy também alertou seu irmão mais velho do risco de que a situação saísse do controle.

"Os negros agora estão hostis e furiosos e eles ficarão furiosos com tudo. Não dá para conversar com eles", disse.

"Meus amigos dizem que (até) as empregadas domésticas e funcionários negros estão hostis."

Durante boa parte de seu governo, John F. Kennedy enxergou os direitos civis mais como um assunto político a ser administrado do que como uma questão moral a defender.
Pender para a última alternativa era arriscar a fragmentação do partido Democrata, que na época era um amálgama conturbado de liberais do norte, segregacionistas do sul e pragmáticos, como o presidente, que tentavam manejar as diferenças.

Kennedy, famoso por sua postura de distanciamento, tampouco tinha um compromisso emocional forte com a luta pela liberdade. Durante a maior parte do tempo, ele havia sido um observador da grande revolução social de sua época.

No verão de 1963, no entanto, ele percebeu que seu governo poderia vir a ser definido por sua resposta à crise racial. A inação não era mais uma opção. Como ele mesmo comentou durante um discurso televisivo em junho, as "chamas da frustração e da discórdia estão queimando em todas as cidades, ao norte e ao sul".

28 DE AGOSTO

Em toda a manhã do dia 28 de agosto, enquanto manifestos ganhavam forma do lado de fora de sua janela, o Presidente Kennedy permanecia seguro dentro da Casa Branca liderando uma reunião com estrategistas em política internacional para discutir a guerra do Vietnã.

Antecipadamente à marcha, ele tinha resistido às exigências de Martin Luther King e demais líderes das chamadas "Big Six" (grandes seis) organizações de direito civil de recebê-los em audiência naquela manhã, já que ele não gostaria de ser identificado como um líder muito próximo das manifestações que poderiam se tornar violentas.

Seus conselheiros também estavam preocupados com a possibilidade de que os líderes negros chegassem à Casa Branca com uma lista de requisições nada razoáveis, impossíveis para o presidente realizar.

Se eles deixassem o salão oval da casa presidencial sem um acordo, toda a demonstração nas ruas poderia mudar drasticamente. Para desapontamento dos organizadores da marcha, Kennedy decidiu ser contra a iniciativa de enviar aos manifestantes uma mensagem presidencial, temendo que isso poderia provocar manifestações contra ele no "Mall" --área pública que circunda a Casa Branca.

Em vez disso, ele concordou em receber uma delegação de líderes negros na Casa Branca somente depois que a marcha terminasse, com a esperança de que isso abrandasse a retórica contra ele.

Como precaução extra contra pronunciamentos inflamados - e também para prevenir os subversivos de tomar o controle do sistema de anúncio presidencial - um oficial da administração foi posicionado do lado direito do Lincoln Memorial com um interruptor para desligar o equipamento de som e também com uma vitrola de tocar discos.

Se os manifestantes conseguissem tomar o palanque do microfone, o som seria cortado e a música "Ele tem o mundo todo em suas mãos", cantada por Mahalia Jackson, seria tocada no lugar.

DISCURSO HISTÓRICO

Às 13h40, a asa oeste da Casa Branca acomodava uma pequena televisão no salão oval por meio da qual Kennedy começou a assistir King pouco antes de ele começar a falar.

De pé e posicionado bem no meio da escadaria do mais magnificente púlpito que a América poderia oferecer, o orador pairou o olhar sobre o imenso "mar" de 200 mil manifestantes que se aglomeravam nos dois lados do espalho d'água até além dos limites do Mall, chegando ao Monumento Washington.

Milhares também formavam uma multidão nas áreas laterais do gramado, enquanto outros se mantinham na água da piscina com água até os joelhos para amenizar o calor. Outros ainda cantarolavam amontoados nas árvores expostas à brisa de fim de tarde. Eles não estavam apenas cantando, mas rezando, se abraçando, dando risadas e aplaudindo.

Com a imponente estátua de Abraham Lincoln pairando sobre ele, King então começou a falar para os manifestantes que sua presença à sombra simbólica do "grande emancipador" oferecia uma prova maravilhosa de que uma nova ordem estava se espalhando pelo país.

Por muito tempo, ele reclamou do fato de os americanos negros serem exilados na sua própria terra, "paralisados pelas amarras da segregação e das correntes da discriminação".

Seria fatal para a nação "não vislumbrar a urgência do momento e subestimar a determinação do negro". Sofrendo com o calor sufocante, a primeira reação dos manifestantes foi o silêncio. O discurso não estava indo bem.

"Fale para eles sobre o sonho, Martin", gritou Mahalia Jackson, se referindo ao já conhecido artifício de discurso utilizado por King muitas vezes.

A mensagem não havia entrado no discurso planejado por ele, porque seus assessores insistiram em material novo. Mas King decidiu deixar de lado suas anotações e adentrou espontaneamente no refrão pelo qual ele será lembrado para sempre na história.

"Eu tenho um sonho de que um dia esta nação levantar-se-á e viverá o verdadeiro significado de sua crença", gritou King com seu braço direito levantado para o céu. Rapidamente, ele já estava ganhando seu ritmo vigoroso pela coro emocionado da multidão. "Sonhe!", gritavam eles. "Sonhe!"

Com sua voz alcançando toda a extensão do Mall, King imaginou um futuro em que crianças poderiam "viver numa nação onde eles não seriam julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu carácter". Foi assim que ele alcançou seu caloroso final.

King ainda pediu à multidão para sinalizar se estavam ouvindo bem.

Assistindo na Casa Branca, o presidente Kennedy estava imóvel. Como muitos americanos, esta foi a primeira vez que ele ouvira o discurso de um orador de 34 anos em sua totalidade - pela primeira vez ele avaliou seu método e ouviu sua cadência.

"Ele é bom", disse Kennedy para um de seus assessores. "Ele é muito bom". Entretanto, o presidente parecia ter se impressionado mais pela qualidade da performance de King do que no poder de sua mensagem.

Mas a mensagem era vital. King fez um poderoso discurso pela mudança racial de forma não-violenta. E fez isso com tanta eloquência e poder que a mensagem reverberou não apenas no Mall de Washington, mas também na sala de estar dos americanos.

Dias terríveis e violentos se seguiram. Ainda assim, mesmo com toda a preocupação com a segurança antes do manifesto, 28 de agosto de 1963 foi um dia incrivelmente belo.

Sem confrontos, a marcha provou-se um alívio para a polícia. Até o cair da tarde, houve apenas três prisões, todas envolvendo brancos. No evento, a única ameaça para a polícia não veio de um manifestante desordeiro, mas do frango distribuído mais cedo naquela manhã, que não havia sido refrigerado adequadamente.

Pouco depois das 16h, o chefe da polícia emitiu sua mais importante ordem do dia: nenhum dos oficiais deveria, sob qualquer hipótese, tocar no frango que fora preparado para o jantar.

Aos pés do Lincoln Memorial, Martin Luther King e seus colegas foram colocados em uma caravana de limousines oficiais que bem devagar cruzaram por entre a multidão no trajeto até a a Casa Branca.

Kennedy então recebeu os líderes negros com cumprimentos e repetiu o sonoro refrão que elevou o movimento de direitos civis a um novo plano espiritual: "Eu tenho um sonho". E assim, ele encaminhou todos ao salão oval.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Economia: A República da Meia-entrada

As manifestações de junho continuam a estimular o debate sobre o modelo político-econômico brasileiro, e seus problemas. Recentemente, como tratado na minha coluna de segunda-feira, desenrolou-se a discussão sobre as causas mais profundas do mau funcionamento do Estado brasileiro.
Em longo artigo, o economista André Lara Resende, um dos pais do Plano Real, apontou para um setor público voltado para si mesmo, enquanto que Samuel Pessôa, do Ibre/FGV e Mansueto Almeida, do Ipea, responderam com comentários e artigos em que enfatizam que foram as demandas de transferências pela sociedade que debilitaram a capacidade do Estado de investir e de alocar recursos de forma mais eficiente.
Uma excelente contribuição a esse debate é um trabalho recente dos economistas Marcos Lisboa, diretor vice-presidente do Insper, e Zeina Latif, intitulado (na versão em inglês a que teve acesso este colunista) “Democracy and Growth in Brazil” (Democracia e Crescimento no Brasil). O artigo na íntegra está aqui.
O estudo é longo, e centra-se na ideia de que o Brasil é um país onde é particularmente forte o “rent-seeking”, expressão em inglês da literatura econômica que significa, nas palavras dos autores, “o processo pelo qual grupos especiais conseguem obter privilégios e benefícios de agências do governo”.
O trabalho de Lisboa e Zeina (que é colunista da Agência Estado) historia as causas do “rent-seeking” no Brasil e descreve as suas atuais manifestações, além de mostrar como a literatura econômica explica o fenômeno, e como essas tentativas de interpretação se aplicam ao caso brasileiro. Há também uma detalhada análise das relações entre crescimento, democracia e rent-seeking, de forma geral e no Brasil.
É um longo estudo, do qual eu destacaria dois aspectos: as quatro diferentes formas pelas quais o rent-seeking se manifesta no Brasil de hoje, e as sugestões dos autores para atacar o problema, o que seria positivo tanto para o crescimento econômico como para o fortalecimento da democracia.
A primeira forma de rent-seeking nacional, segundo Lisboa e Zeina, vem por meio de impostos e transferências. Eles notam que o aumento da carga tributária e dos gastos sociais não é um fenômeno isolado do Brasil, mas sim uma tendência global que se fez presente sobretudo no século XX. O problema nacional, acrescentam, é que o Estado brasileiro arrecada de uma forma demasiadamente complicada, o que atrapalha a atividade econômica, e distribui mal.
Assim, apesar da introdução de programas bem elaborados e bem sucedidos, como o Bolsa Família, a ação do governo brasileiro, em termos de taxar e redistribuir, não melhora a distribuição de renda de forma agregada, segundo alguns estudos citados por Lisboa e Zeina. Uma das razões é que os benefícios distribuídos pelo governo são muito concentrados. Assim, o sistema previdenciário é responsável por 85% das transferências do governo para as famílias, o que equivale a 11% do PIB. Mas a distribuição dos benefícios previdenciários é concentrada, não contribuindo para reduzir a desigualdade de renda disponível.
Um exemplo de “rent-seeking” tributário citado pelos autores é a Zona Franca de Manaus, cujos subsídios foram criados para ser temporários, mas vêm se estendendo indefinidamente. Incentivos fiscais de pelos menos R$ 24 bilhões teriam sido concedidos em 2011, o que equivale a 0,6% do PIB, para um sistema de produção que exporta muito pouco (menos de 3% do faturamento das empresas) e “sobrevive com base na demanda doméstica cativa e barreiras ao comércio que protegem a produção local”.
O segundo mecanismo de “rent-seeking” listado pelos autores sãos “as transferência compulsórias de dinheiro fora do orçamento do governo”. Lisboa e Zeina exemplificam com o Sistema S, que se alimenta de deduções em folha salarial, e que arrecadou 0,3% do PIB em 2010. Outro caso semelhante é o FGTS, que captou perto de 1,7% do PIB em 2010. Segundo Lisboa e Zeina, “não há nenhum mecanismo transparente para avaliar o custo-benefício desses instrumentos e o seu custo de oportunidade em relação a utilizações alternativas ou aumentos do salário real”.
O terceiro item da lista são os subsídios cruzados, que vão da regulação do seguro-saúde aos serviços de infraestrutura, incluindo até a “meia-entrada” para eventos artísticos e culturais.
Uma faceta particularmente importante dos subsídios cruzados envolve o setor de crédito, onde, como os autores observam, a parcela de 20% dos empréstimos subsidiados (excluindo o BNDES) pagou um spread médio de 3,5% em 2012, comparado com 20% para o crédito livre.
No caso do BNDES, eles notam que os empréstimos aumentaram “dramaticamente” de 6% para 11% do PIB depois da crise global, com subsídios implícitos calculados em R$ 22,8 bilhões em 2011.
O quarto mecanismo, finalmente, é o protecionismo comercial. O Brasil está no grupo das economias mais fechadas do mundo, quando se mede o nível e a complexidade das tarifas e das barreiras não tarifárias, e a eficiência dos procedimentos de importação.
Propostas
Lisboa e Zeina têm duas propostas básicas para ajudar a iniciar o desmonte da “República da Meia Entrada”, como já vem sendo ironicamente descrito o Brasil que sai dessa chave interpretativa onde o “rent-seeking” é o elemento central.
A primeira seria a criação de uma agência governamental responsável por contabilizar os objetivos e os resultados de todas as políticas públicas. Para os dois autores, “transparência e responsabilização são essenciais para prover ferramentas democráticas que permitam à sociedade decidir sobre intervenções governamentais”.
A segunda sugestão é que toda intervenção governamental tenha de ser inteiramente contabilizada no Orçamento, acabando assim com o ocultamento do custo dos milhares de “meias-entradas” distribuídas pelo Estado brasileiro. Eles admitem que, dada a dimensão do “rent-seeking” no Brasil, esta segunda proposta “está longe de ser modesta”.
Lisboa esteve à frente, em 2002, da elaboração da chamada “Agenda Perdida”, um documento de propostas econômicas, com foco na microeconomia e na regulação, que foi adotado pelo ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci, no início do primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva.
Lisboa foi para o governo junto com a “Agenda Perdida”, como secretário de Política Econômica da Fazenda. Lá, comandou a bem sucedida implementação de boa parte das propostas, com destaque para a área de crédito, com o deslanche do consignado e dos empréstimos imobiliários.
Com a campanha eleitoral de 2014 já virtualmente iniciada, não seria má ideia que os pré-candidatos olhassem o que ele e Zeina têm para dizer.

Fernando Dantas. Estadão.
 Esse artigo foi publicado originalmente na AE-News/Broadcast

domingo, 28 de julho de 2013

Com a palavra: Eliana Calmon

Baiana, a ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirma que o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) desrespeita propositadamente orientações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que cobram mais transparência e eficiência no Judiciário baiano. Ela lembra que desde sua passagem pela corregedoria do CNJ constatou-se a existência de varas com insuficiência de servidores de um lado e funcionários fantasmas e servidores com altos salários e sem função nos gabinetes dos desembargadores de outro - uma das muitas irregularidades que geraram agora sindicâncias contra a direção do Tribunal.

Eliana aponta ainda a troca de favores entre o governo do estado e a ‘igrejinha’ que domina o poder no TJ-BA. Eliana Calmon recebeu o CORREIO  em seu apartamento, no Edifício Oceania, com vista para o Farol da Barra, e, em mais de uma hora de conversa, falou ainda sobre o desejo de ocupar cargo político na Bahia. Veja os principais tópicos da entrevista:


Eliana Calmon recebeu o CORREIO no Edifício Oceania (Foto: Arisson Marinho)


Inspeção do CNJ no TJ-BA
Há, por parte do TJ, o entendimento de que não deve cumprir determinações do CNJ, que ninguém deve se meter no tribunal. Muitas irregularidades eu já havia apontado, e o ministro Francisco Falcão (atual corregedor do CNJ) veio saber se tinham sido cumpridas as determinações. Viu que não foram, encontrou novas irregularidades e decidiu abrir sindicâncias. Os problemas são antigos. O ministro Gilson Dipp (corregedor entre 2008 a 2010) veio aqui e verificou que estava caótica a gestão do tribunal. Fiz recomendações e eu vim aqui cobrar duas vezes. Constatei que nada tinha sido feito: estava pior. 
A população continuava sofrendo com falta de estrutura, faltando juízes e servidores, e eles diziam que não tinham recursos para fazer concurso. Essas situações não são novas.

Cálculo de precatórios que onerou o estado e prefeitura de Salvador em R$ 448 milhões
É uma gestão indevida, porque foram cálculos errados, feitos por ignorância, descaso, desprezo. Eu já tinha determinado que a Justiça Federal fornecesse os cálculos, eles têm tudo isso informatizado e ficou decidido que eles colaborariam, mas eles não buscaram ajuda. O que é  corrupção? É ação ou inação. A inação é uma forma de corrupção. Eu não acho que seja uma corrupção ativa, que esse dinheiro tenha sido propositalmente dado a alguém. Acho que houve, porém, algumas facilidades de algumas pessoas favorecidas na fila, na ordem cronológica.

Funcionários fantasmas 
Há muitos cargos em comissão nos gabinetes dos desembargadores, enquanto as varas, onde o atendimento é feito, estão vazias. Encontrei varas com um ou dois funcionários na própria capital. E um monte de funcionários fantasmas ou sem fazer nada no TJ, com altos salários e gratificações. Havia caso de funcionária que morava em São Paulo e não vinha aqui, com salários altos, de R$ 15 mil. É muito difícil investigar a Justiça da Bahia, porque há uma resistência muito grande. Eu pedi, mas não apresentaram as declarações de renda (de mais de mil servidores e juízes).

Política no TJ-BA
Na realidade, é uma política para nada, de domínio pessoal. O desembargador Dultra Cinta, que veio para substituir um grupo que era dominado pelo carlismo, terminou exercendo as mesmas práticas de domínio e deixou seguidores. Os desafetos não entram no tribunal, os desembargadores que não acompanham a igrejinha ficam em segundo plano. Isso é a prática diuturna de uma gestão viciada. A politica dentro da Justiça é para as pessoas se sentirem donas do tribunal.

Relação entre Judiciário e Executivo
Há uma vinculação muito grande do governador à presidência, ao grupo dominante, porque existe sempre a ideia de que o tribunal deve estar bem com o governo. Mas a Constituição de 88 acabou com isso. O Judiciário é fiscal das políticas públicas e pode se insurgir contra o governo quando as políticas não são adequadas. Existe na Bahia uma espécie de pacto onde o TJ está muito alinhado ao governador, o Ministério Público também tá alinhado ao governador e todos os poderes vivem tranquilamente dentro deste pacto silencioso que existe entre os poderes.  Existem trocas de favores, existem algumas conivências. Existe o olhar mais apurado para as causas que os donos do poder têm interesse, e é exatamente isso que nós não gostaríamos que tivesse, que a Justiça fosse independente.

Reforma do Judiciário
A sociedade toda está indignada com a aposentadoria compulsória com proventos integrais de alguém que foi execrado pela Justiça. Eu não dou dois anos para a reforma acontecer, as ruas não gritaram ainda em razão do julgamento do mensalão e de Joaquim Barbosa. É o que está segurando o grito do povo contra o Judiciário, mas o povo não está satisfeito com os três poderes. Os magistrados querem reforma, mas sem perder benefícios, que eles chamam de prerrogativas. Os dias trabalhados de um magistrado são 162 dos 365 do ano. Ele tem dois meses de férias, vinte dias de recesso, tem os feriados, domingos e sábados. Isso não pode, não é prerrogativa: é falta de trabalho, em um órgão que está superlotado de  trabalho, tem muito processo e não se julga porque não tem tempo, isso não se admite.

Novos tribunais federais 
A criação dos tribunais regionais (o Congresso aprovou a criação de quatro - um na Bahia - mas o STF suspendeu a lei) é bom para os juízes. Todos querem porque fazem com que mais juízes ascendam aos tribunais, as carreiras deslancham. Os políticos também querem, porque é uma forma de colocar parentes e aderentes no tribunal. O tribunal da 5ª Região, em Recife, que atende a todo o Nordeste, está muito bem, não tem atrasos, cada gabinete tem 200 processos. E o que vai acontecer? Vão ficar ociosos com a criação do tribunal Bahia/Sergipe.

Reforma política
A questão mais controvertida é o financiamento de campanha. É esse o ovo da serpente. Talvez a melhor forma fosse o plebiscito, porque as pessoas opinariam. Agora, o plebiscito a toque de caixa, a um ano das eleições, seria deletério, porque não se faria algo bem feito. Infelizmente, vimos a perplexidade (dos políticos) em relação ao grito das ruas e ainda a forma que tentam enganar o povo. Na semana seguinte às passeatas, houve a utilização do aviação da FAB na cara do povo. O que significa que eles não vão mudar. O povo tem que fazer como o bulldog, morde e não solta, continua agarrado. A presidente Dilma está acuada. Ela tem uma questão de governabilidade muito séria, o estado está parado em termos de desenvolvimento, e ela é refém de um congresso que não é parceiro dela.

Carreira política
Eu ainda tenho responsabilidade com o Poder Judiciário (se aposenta em novembro de 2015). Tenho recebido muitos convites, dos mais diversos partidos, eu fico até vaidosa de cogitarem meu nome. Mas o que fico questionando é:  será que eu seria uma boa política? Tenho muito receio de entrar para a política. Não descarto, mas não digo que aceitarei, principalmente nas próximas, mas ainda não tenho segurança. Não tenho predileção por partidos. Os partidos no Brasil não têm ideologia própria: aqui se vota em pessoas, não em partidos.

Medos
Dentro de um panorama que se delineia de partidos, de financiamento de campanha, tudo isso é muito difícil. Eu vivo do meu salário, tenho poucas economias: e o dinheiro para campanha? Eu serei financiada por alguém e esse alguém vai ser meu dono? Eu até agora não fui propriedade de ninguém. Tenho dito com toda a sinceridade isso aos partidos que me convidam. 

Cargo político na Bahia
Eu tenho um carinho especial pela Bahia. Sou baiana, a minha família é toda da Bahia. Até meu neto, que nasceu em Brasília, gosta é da Bahia. É muito interessante observar como a gente vai se ligando a nossa terra, não é?

terça-feira, 11 de junho de 2013

Bolsa Família x Coronelismo

Bolsa Família enfraquece o coronelismo e rompe cultura da resignação, diz socióloga


FSP, 10/06/13

Dez anos após sua implantação, o Bolsa Família mudou a vida nos rincões mais pobres do país: o tradicional coronelismo perde força e a arraigada cultura da resignação está sendo abalada.

A conclusão é da socióloga Walquiria Leão Rego, 67, que escreveu, com o filósofo italiano Alessandro Pinzani, "Vozes do Bolsa Família" (Editora Unesp, 248 págs., R$ 36). O livro será lançado hoje, às 19h, na Livraria da Vila do shopping Pátio Higienópolis. No local, haverá um debate mediado por Jézio Gutierre com a participação do cientista político André Singer e da socióloga Amélia Cohn.

Durante cinco anos, entre 2006 e 2011, a dupla realizou entrevistas com os beneficiários do Bolsa Família e percorreu lugares como o Vale do Jequitinhonha (MG), o sertão alagoano, o interior do Maranhão, Piauí e Recife. Queriam investigar o "poder liberatório do dinheiro" provocado pelo programa.

Aproveitando férias e folgas, eles pagaram do próprio bolso os custos das viagens. Sem se preocupar com estatística, a pesquisa foi qualitativa e baseada em entrevistas abertas.

Professora de teoria da cidadania na Unicamp, Rego defende que o Bolsa Família "é o início de uma democratização real" do país. Nesta entrevista, ela fala dos boatos que sacudiram o programa recentemente e dos preconceitos que cercam a iniciativa: "Nossa elite é muito cruel", afirma.



Folha - Como explicar o pânico recente no Bolsa Família? Qual o impacto do programa nas regiões onde a sra. pesquisou?
Walquiria Leão Rego - Enorme. Basta ver que um boato fez correr um milhão de pessoas. Isso se espalha pelos radialistas de interior. Elas [as pessoas] são muito frágeis. Certamente entraram em absoluto desespero. Poderia ter gerado coisas até mais violentas. Foi de uma crueldade desmesurada. Foi espalhado o pânico entre pessoas que não têm defesa. Uma coisa foi a medida administrativa da CEF (Caixa Econômica Federal). Outra coisa é o que a policia tem que descobrir: onde começou o boato. Fiquei estupefata. Quem fez isso não tem nem compaixão. Nossa elite é muito cruel. Não estou dizendo que foi a elite, porque seria uma leviandade.

Como assim?
Tem uma crueldade no modo como as pessoas falam dos pobres. Daí aparecem os adolescentes que esfaqueiam mendigos e queimam índios. Há uma crueldade social, uma sociedade com desigualdades tão profundas e tão antigas. Não se olha o outro como um concidadão, mas como se fosse uma espécie de sub-humanidade. Certamente essa crueldade vem da escravidão. Nenhum país tem mais de três séculos de escravidão impunemente.

Qual o impacto do Bolsa Família nas relações familiares?
Ocorreram transformações nelas mesmas. De repente se ganha uma certa dignidade na vida, algo que nunca se teve, que é a regularidade de uma renda. Se ganha uma segurança maior e respeitabilidade. Houve também um impacto econômico e comercial muito grande. Elas são boas pagadoras e aprenderam a gerir o dinheiro após dez anos de experiência. Não acho que resolveu o problema. Mas é o início de uma democratização real, da democratização da democracia brasileira. É inaceitável uma pessoa se considerar um democrata e achar que não tenha nada a ver com um concidadão que esteja ali caído na rua. Essa é uma questão pública da maior importância.

O Bolsa Família deveria entrar na Constituição?
A constitucionalização do Bolsa Família precisava ser feita urgentemente. E a renda tem que ser maior. Esse é um programa barato, 0,5% do PIB. Acho, também, que as pessoas têm direito à renda básica. Tem que ser uma política de Estado, que nenhum governo possa dizer que não tem mais recurso. Mas qualquer política distributiva mexe com interesses poderosos.

A sra. poderia explicar melhor?
Isso é histórico. A elite brasileira acha que o Estado é para ela, que não pode ter esse negócio de dar dinheiro para pobre. Além de o Bolsa Família entrar na Constituição, é preciso ter outras políticas complementares, políticas culturais específicas. É preciso ter uma escola pensada para aquela população. É preciso ter outra televisão, pois essa é a pior possível, não ajuda a desfazer preconceitos. É preciso organizar um conjunto de políticas articuladas para formar cidadãos.

A sra. quer dizer que a ascensão é só de consumidores?
As pessoas quando saem desse nível de pobreza não se transformam só em consumidores. A gente se engana. Uma pesquisadora sobre o programa Luz para Todos, no Vale do Jequitinhonha, perguntou para um senhor o que mais o tinha impactado com a chegada da luz. A pesquisadora, com seu preconceito de classe média, já estava pronta para escrever: fui comprar uma televisão. Mas o senhor disse: 'A coisa que mais me impactou foi ver pela primeira vez o rosto dos meus filhos dormindo; eu nunca tinha visto'. Essa delicadeza... a gente se surpreende muito.

O que a surpreendeu na sua pesquisa?
Quando vi a alegria que sentiam de poder partilhar uma comida que era deles, que não tinha sido pedida. Não tinham passado pela humilhação de pedi-la; foram lá e compraram. Crianças que comeram macarrão com salsicha pela primeira vez. É muito preconceituoso dizer que só querem consumir. A distância entre nós é tão grande que a gente não pode imaginar. A carência lá é tão absurda. Aprendi que pode ser uma grande experiência tomar água gelada.

Li que a sra. teria apurado que o Bolsa Família, ao tornar as mulheres mais independentes, estava provocando separações, uma revolução feminina. Mas não encontrei isso no livro. O que é fato?
É só conhecer um pouco o país para saber que não poderia haver entre essas mulheres uma revolução feminista. É difícil para elas mudar as relações conjugais. Elas são mais autônomas com a Bolsa? São. Elas nunca tiveram dinheiro e passaram a ter, são titulares do cartão, têm a senha. Elas têm uma moralidade muito forte: compram primeiro a comida para as crianças. Depois, se sobrar, compram colchão, televisão. É ainda muito difícil falar da vida pessoal. Uma ou outra me disse que tinha vontade de se separar. Há o problema de alcoolismo. Esses processos no Brasil são muito longos. Em São Paulo é comum a separação; no sertão é incomum. A família em muitos lugares é ampliada, com sogra, mãe, cunhado vivendo muito próximos. Essa realidade não se desfaz.

Mas há indícios de mudança?
Indícios, sim. Certamente elas estão falando mais nesse assunto. Em 2006, não queriam falar de sentimentos privados. Em 2011, num povoado no sertão de Alagoas, me disseram que tinha havido cinco casos de separação. Perguntei as razões. Uma me disse: 'Aquela se apaixonou pelo marido da vizinha'. Perguntei para outra. Ela disse: 'Pensando bem, acho que a bolsa nos dá mais coragem'. Disso daí deduzir que há um movimento feminista, meu deus do céu, é quase cruel. Não sei se dá para fazer essa relação tão automática do Bolsa com a transformação delas em mulheres mais independentes. Certamente são mais independentes, como qualquer pessoa que não tinha nada e passa a ter uma renda. Um homem também. Mas há censuras internas, tem a religião. As coisas são muito mais espessas do que a gente imagina.

O machismo é muito forte?
Sim. E também dentro delas. Se o machismo é muito percebido em São Paulo, imagina quando no chamado Brasil profundo. Lá, os padrões familiares são muito rígidos. É comum se ouvir que a mulher saiu da escola porque o pai disse que ela não precisava aprender. Elas se casam muito cedo. Agora, como prevê a sociologia do dinheiro, elas estão muito contentes pela regularidade, pela estabilidade, pelo fato de poderem planejar minimamente a vida. Mas eu não avançaria numa hipótese de revolução sexual.

O Bolsa Família mexeu com o coronelismo?
Sim, enfraqueceu o coronelismo. O dinheiro vem no nome dela, com uma senha dela e é ela que vai ao banco; não tem que pedir para ninguém. É muito diferente se o governo entregasse o dinheiro ao prefeito. Num programa que envolve 54 milhões de pessoas, alguma coisa de vez em quando [acontece]. Mas a fraude é quase zero. O cadastro único é muito bem feito. Foi uma ação de Estado que enfraqueceu o coronelismo. Elas aprenderam a usar o 0800 e vão para o telefone público ligar para reclamar. Essa ideia de que é uma massa passiva de imbecis que não reagem é preconceito puro.

E a questão eleitoral?
O coronel perdeu peso porque ela adquiriu uma liberdade que não tinha. Não precisa ir ao prefeito. Pode pedir uma rua melhor, mas não comida, que era por ai que o coronelismo funcionava. Há resíduos culturais. Ela pode votar no prefeito da família tal, mas para presidente da República, não.

Esses votos são do Lula?
São. Até 2011, quando terminei a pesquisa, eram. Quando me perguntam por que Lula tem essa força, respondo: nunca paramos para estudar o peso da fala testemunhal. Todos sabem que ele passou fome, que é um homem do povo e que sabe o que é pobreza. A figura dele é muito forte. O lado ruim é que seja muito personalizado. Mas, também, existe uma identidade partidária, uma capilaridade do PT.

Há um argumento que diz que o Bolsa Família é como uma droga que torna o lulismo imbatível nas urnas. O que a sra. acha?
Isso é preconceito. A elite brasileira ignora o seu país e vai ficando dura, insensível. Sente aquele povo como sendo uma sub-humanidade. Imaginam que essas pessoas são idiotas. Por R$ 5 por mês eles compram uma parabólica usada. Cheguei uma vez numa casa e eles estavam vendo TV Senado. Perguntei o motivo. A resposta: 'A gente gosta porque tem alguma coisa para aprender'.

No livro a sra. cita muitos casos de mulheres que fizeram laqueadura. Como é isso?
O SUS (Sistema Único de Saúde) está fazendo a pedido delas. É o sonho maior. Aliás, outro preconceito é dizer que elas vão se encher de filhos para aumentar o Bolsa Família. É supor que sejam imbecis. O grande sonho é tomar a pílula ou fazer laqueadura.

A sra. afirma que é preconceito dizer que as pessoas vão para o Bolsa Família para não trabalhar. Por quê?
Nessas regiões não há emprego. Eles são chamados ocasionalmente para, por exemplo, colher feijão. É um trabalho sem nenhum direito e ganham menos que no Bolsa Família. Não há fábricas; só se vê terra cercada, com muitos eucaliptos. Os homens do Vale do Jequitinhonha vêm trabalhar aqui por salários aviltantes. Um fazendeiro disse para o meu marido que não conseguia mais homens para trabalhar por causa do Bolsa Família. Mas ele pagava R$ 20 por semana! O cara quer escravo. Paga uma miséria por um trabalho duro de 12, 16 horas, não assina carteira, é autoritário, e acha que as pessoas têm que se submeter a isso. E dizem que receber dinheiro do Estado é uma vergonha.

Há vontade de deixar o Bolsa Família?
Elas gostariam de ter emprego, salário, carteira assinada, férias, direitos. Há também uma pressão social. Ouvem dizer que estão acomodadas. Uma pesquisa feita em Itaboraí, no Rio de Janeiro, diz que lá elas têm vergonha de ter o cartão. São vistas como pobres coitadas que dependem do governo para viver, que são incapazes, vagabundas. Como em "Ralé", de Máximo Gorki, os pobres repetem a ideologia da elite. A miséria é muito dura.

A sra. escreve que o Bolsa Família é o inicio da superação da cultura de resignação? Será?
A cultura da resignação foi muito estudada e é tema da literatura: Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego. Ela tem componente religioso: 'Deus quis assim'. E mescla elementos culturais: a espera da chuva, as promessas. Essa cultura da resignação foi rompida pelo Bolsa Família: a vida pode ser diferente, não é uma repetição. É a hipótese que eu levanto. Aparece uma coisa nova: é possível e é bom ter uma renda regular. É possível ter outra vida, não preciso ver meus filhos morrerem de fome, como minha mãe e minha vó viam. Esse sentimento de que o Brasil está vivendo uma coisa nova é muito real. Hoje se encontram negras médicas, dentistas, por causa do ProUni (Universidade para Todos). Depois de dez anos, o Bolsa Família tem mostrado que é possível melhorar de vida, aprender coisas novas. Não tem mais o 'Fabiano' [personagem de "Vidas Secas"], a vida não é tão seca mais.


segunda-feira, 15 de abril de 2013

Um CPC democrático.


Caros e caras,

na Revista Veja que circulou neste fim de semana, o professor Antônio Cláudio da Costa Machado volta a apresentar suas críticas ao projeto de novo CPC, cujo relatório será lido na próxima quarta-feira. O ilustre professor qualifica o projeto de autoritário. Apresenta, nesta reportagem, cinco críticas.
Gostaria de apresentar uma breve resposta a cada uma delas.

1) Critica a ausência de pressupostos específicos para a concessão de medida cautelar como o arresto. A crítica, com todo o respeito, não procede. A possibilidade de concessão de medidas cautelares com base nos pressupostos genéricos da probabilidade do direito e do perigo da demora existe desde 1973 – é o conhecido poder geral de cautela (art. 798, CPC/1973). Esta cláusula geral autoriza a concessão de qualquer medida cautelar atípica, inclusive o arresto atípico – o que fez com que Galeno Lacerda dissesse, há trinta anos, que um sistema em que há poder geral de cautela torna desnecessária a especificação de pressupostos para a concessão dessa ou daquela medida cautelar. O projeto apenas preserva o poder geral de cautela.

2) Critica a ausência de recurso contra as decisões em matéria de prova. A crítica não procede, por duas razões: a) expressamente se prevê agravo de instrumento contra decisão que redistribui o ônus da prova (art. 1028, XIII, do projeto); b) as interlocutórias em matéria de prova são recorríveis na apelação (art. 1022, §2º, projeto). Atualmente, as decisões sobre prova são impugnáveis por agravo retido, que, como todos sabem, tem de ser reiterado na apelação, sob pena de não ser conhecido. O projeto exige que o interessado demonstre a sua irresignação no primeiro momento em que couber falar nos autos, por meio de mecanismo semelhante ao do “protesto” da Justiça do Trabalho – que funciona muito bem há anos e que se parece com o agravo retido, embora mais simples. Depois, cabe ao interessado reiterar a sua irresignação na apelação. Pergunto: em que esse sistema difere do atual? A decisão sobre prova é irrecorrível, na linha do que foi dito pela Revista Veja? Não, ela é recorrível no mesmo padrão em que é hoje.

3) Critica a ausência de efeito suspensivo, como regra, na apelação. O professor, no particular, deve ter examinado uma versão mais antiga do projeto: a versão que será lida na próxima quarta-feira preserva o efeito suspensivo da apelação, ressalvadas as hipóteses atualmente existentes em que ela não tem efeito suspensivo automático (art. 1025, caput e §2º, do projeto). Prevê-se, porém, a possibilidade de o relator retirar o efeito suspensivo da apelação, se o apelado demonstrar que, em razão da execução provisória da sentença, não há risco de dano irreparável ao apelante e que é improvável o acolhimento do recurso.

4) Critica a possibilidade de tutela antecipada liminar sem urgência, com base apenas em documento suficiente. A crítica, no particular, é simplesmente equivocada. O projeto traz apenas duas hipóteses de tutela antecipada liminar sem urgência (tutela antecipada da evidência: art. 306, par. ún., do projeto): a) no caso de ação de depósito (repetindo regra que já existe atualmente, decorrente do art. 902, I, CPC/1973, vigente há quase quarenta anos); b) nos casos em que há pedido cujo lastro fático se comprova documentalmente e a tese jurídica afirmada está consolidada em súmula vinculante ou julgamento de casos repetitivos: esta hipótese, embora nova, é totalmente razoável, já que a evidência do direito é, no caso, manifesta.

5) Critica, ainda, a restrição à liminar possessória nos casos de litígios coletivos de posse. No caso, a reportagem simplesmente não explicou a medida, tornando a crítica meramente ideológica. Vou tentar explicar a regra proposta. Atualmente, o possuidor, para ter direito a uma liminar possessória em que se dispensa a demonstração de urgência, precisa ingressar com sua ação possessória em até um ano da turbação ou do esbulho afirmado na petição inicial – regra bem antiga. O projeto mantém a regra, para os casos de conflitos possessórios individuais (Tício contra Caio). Quando a possessória disser respeito a litígio coletivo, propõe o projeto que, para ter direito ao mencionado benefício, o possuidor ingresse com a possessória no prazo de seis meses, contados da data da turbação ou do esbulho afirmado na petição inicial. Se propuser a ação depois deste prazo, antes de examinar o pedido de tutela antecipada, o juiz marcará uma audiência de mediação (art. 579 do projeto). Não se nega a tutela antecipada, mas, tendo em vista a existência de uma coletividade no polo passivo, e o prazo superior a seis meses da turbação ou do esbulho, entende-se que, então, é o caso de ouvi-la, a coletividade, antes da concessão da tutela antecipada. A regra é bem razoável: não se pode querer dar o mesmo tratamento a conflitos possessórios tão diferentes como o individual e o coletivo. Note que, se o possuidor ingressar com a ação possessória em menos de seis meses, terá direito à mesma tradicional liminar possessória sem urgência. De todo modo, pode-se acusar a regra de tudo, menos de autoritária.

O projeto pode ser bom ou ruim.

O que não é correto é acusá-lo de autoritário.

Nunca se debateu tanto um CPC – nossos dois únicos foram produzidos em períodos de exceção, sem debate, foram Códigos outorgados. Eu testemunhei este debate; o Brasil falou e foi ouvido. Mais de mil alterações foram feitas na versão que veio do Senado. Novecentas emendas parlamentares foram apresentadas; mais de trezentas pessoas foram ouvidas em audiências públicas; todas as entidades de classe e associações que apresentaram sugestões foram atendidas, escutadas e, quase sempre, ao menos um dos pleitos foi atendido; professores de todo o Brasil foram escutados – sem protagonismo de qualquer Região. O próprio professor Antônio Cláudio teve várias propostas acolhidas – muitas delas encampadas por alguns deputados, inclusive. Na Comissão de Juristas que auxiliou a Câmara dos Deputados, havia um baiano, um sulmatogrossensse, um pernambucano, um paulistano, um gaúcho, um paraibano e um carioca.

Este será um código sem sotaque.

Jamais, em nossa história, se viu um projeto de lei que atribuísse ao magistrado tantos deveres: a) dever de respeitar a jurisprudência e mantê-la estável (arts. 520-521 do projeto); b) dever de prevenir as partes sobre defeitos processuais, evitando, com isso, decisões de inadmissibilidade mesquinhas e desnecessárias (arts. 76, 322, 945, par. ún., 1023, § 3º, 1030, §3º, 1042, §2º); c) dever de ouvir as partes sobre qualquer ponto relevante para a sua decisão, mesmo que se trate de ponto a respeito do qual poderia conhecer de ofício – versão substancial do contraditório (art. 10 do projeto); d) dever de dar publicidade ao comparecimento informal do advogado ou de qualquer das partes ao seu gabinete (art. 190 do projeto).

Transcrevo os §§1º e 2º do art. 499, o mais belo conjunto de dispositivos do projeto: “§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limita a indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo; II – empregue conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o órgão jurisdicional deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada”.

Esses são dispositivos de um código autoritário?

O projeto resgata, ainda, o protagonismo das partes no processo, dando à autonomia privada um papel no processo civil brasileiro jamais visto: a) prestigia-se a arbitragem (art. 3º, §1º; arts. 345-350 do projeto); b) a autocomposição é extremamente valorizada (art. 3º, §2º; arts. 166-176 do projeto); c) permitem-se acordos de procedimento atípicos (art. 191 do projeto), cláusula geral de autonomia privada processual inédita no direito brasileiro; d) aprimora-se a convenção sobre o ônus da prova (art.  380, §3º, do projeto); e) permite-se a escolha consensual do perito pelas partes (art. 478 do projeto); f) cria-se o negócio processual típico chamado “acordo de saneamento”, permitindo que as partes, principais conhecedoras da causa, levem o processo saneado ao órgão jurisdicional (art. 364, §2º, do projeto).

Tudo isso sem falar no regramento minucioso do benefício da justiça gratuita (arts. 98-102 do projeto) e nas regras de fungibilidade recíproca entre os recursos extraordinário e especial, em enfrentamento direto de importante manifestação da jurisprudência defensiva dos tribunais superiores (arts. 1045-1046 do projeto).

Este Código, no futuro, será inevitavelmente apelidado de “Código das Partes”. Basta lê-lo sem pré-compreensões, que isso se revela com muita clareza.

Não é fácil elaborar um código em regime democrático. Como podem opinar, todos sempre terão algo para divergir e criticar. O projeto não pode ser chamado de autoritário porque não se concorda com alguns de seus dispositivos – que são, por óbvio, opções políticas construídas pelo debate parlamentar. Eu mesmo tenho as minhas críticas: há muita coisa que eu não colocaria no projeto. Mas isso é bom; melhor: é fundamental. O simples fato de que ninguém está totalmente satisfeito é o quanto basta para demonstrar que este projeto é resultado de um processo legislativo democrático.

Como não estamos acostumados com isso, não sabemos reconhecer essa grande qualidade.

Em 14.04.2013.

Fredie Didier Jr. - Professor de Processo Civil da Universidade Federal da Bahia, Livre-docente pela USP.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Joelma e Daniela Mercury são as duas caras da cultura brasileira

As duas vêm da metade norte do país e fazem música com forte apelo popular. Esbanjam energia no palco, usam roupas provocantes e estão sempre sorridentes. No entanto, mesmo com tantas semelhanças, neste momento estão a anos-luz uma da outra.

Bem-vindos à versão brasileira da guerra cultural. O termo foi cunhado nos Estados Unidos nos anos 80 e descreve a divisão da sociedade em relação a assuntos como aborto, contracepção, drogas e homossexualidade (cultura aqui tem um sentido mais amplo, não se limitando apenas à arte e à educação).

De um lado, conservadores brandindo Bíblias e anunciando o fim dos tempos; do outro, liberais (no sentido americano) pregando o "liberou geral". A guerra cultural foi usada como arma pelos dois lados, e serviu para definir o resultado de inúmeras eleições por lá.

Mas não aqui no Brasil. Apesar das enormes diferenças sociais, aqui sempre nos orgulhamos de sermos um povo só. Além do mais, temas polêmicos eram rapidamente descartados do debate político: afinal, temos mais com que nos preocupar, como a miséria, a falta de infraestrutura e a corrupção.

Isto mudou de uns anos para cá. De uma hora para outra, liberação do aborto e aprovação do casamento gay se tornaram assuntos de campanha eleitoral. E o Brasil se revelou um país muito mais dividido do que se supunha antes.

A guerra cultural se instalou entre nós, e agora atinge também a cultura no sentido estrito.

O fenômeno se excarcerou esta semana, depois da entrevista de Joelma à revista "Época". Não foi a primeira vez que a cantora soltou declarações homofóbicas, só para em seguida dizer que ama os gays e não tem nada contra eles.

Claro que tem. Joelma, como muitos brasileiros, acha que homofobia é pregar a violência contra os homossexuais, e mais nada. Basta o sujeito não sair de lâmpada na mão pelas ruas para não ser considerado preconceituoso: o resto é só "liberdade de expressão".

As posições de Joelma causaram um maremoto nas redes sociais. Tão forte que a cantora precisou gravar um vídeo tentando se explicar, mas só conseguiu se enrolar ainda mais.

E então surgiu a notícia de que o filme sobre a banda Calypso estaria cancelado, devido à dificuldade em conseguir patrocínio. O diretor nega, mas o fato é que o projeto já não estava conseguindo captar a grana necessária antes desse bafafá. Agora, então, duvido que algum grande anunciante queira associar sua marca ao nome da banda.

A poeira ainda estava no ar quando Daniela Mercury publicou as fotos com sua esposa no Instagram. Nova comoção na internet, com muita gente aplaudindo a coragem da cantora baiana e outros tanto vaiando-a.

Daniela vem se juntar a um time que já conta com Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Xuxa, Caetano Veloso, Wagner Moura e muitos outros. Enquanto isto, nenhum nome de peso saiu em defesa de Joelma.

Essa briga está só começando, e muita água ainda vai rolar. Se nos mirarmos no exemplo dos Estados Unidos, temos alguns anos de guerra cultural pela frente. Que, por lá, já está praticamente decidida: adivinha quem venceu?


Fonte: Folha de São Paulo - Coluna de Tony Goes

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Conscientização do Autismo

Se você sente fome, frio ou dor e precisa de ajuda, o que fazer? Imagine você impossibilitado de dizer o que quer, o que precisa? Se conseguiu imaginar, então entendeu um pequeno fragmento do mundo de  uma pessoa com autismo.

“O autismo me prendeu dentro de um corpo que não posso controlar”, disse Carly Fleishmann. A menina canadense quebrou uma espécie de barreira invisível e descobriu, aos 10 anos de idade, como mostrar aos pais o que queria. Mesmo sem ter aprendido a escrever, Carly encontrou no teclado de um computador a voz que lhe faltava.

Os comportamentos típicos do autismo continuavam, entre eles gritar, balançar os braços violentamente e realizar movimentos repetitivos. No entanto, esse comportamento passou a ter uma explicação: “Se não fizer isso, parece que meu corpo vai explodir. Se pudesse parar, eu pararia, mas não há como desligar. Sei o que é certo e errado, mas é como se estivesse travando uma luta contra o meu cérebro”, disse.

Carly aplicou conhecimentos absorvidos ao longo dos anos e escreveu as primeiras palavras. Desde então, foi estimulada por seus pais a digitar o que sentia. Assim, a menina mostrou à sociedade que os autistas não vivem em um universo particular, construído para isolá-los do mundo.
Eles apenas precisam reagir de certa forma para se concentrar ou controlar uma intensa atividade cerebral. “Eu gostaria de ir à escola como as outras crianças, mas sem que me achassem estranha quando eu começasse a bater na mesa ou gritar. Eu gostaria de algo que apagasse o fogo”.

Ontem (2), Dia Mundial de Conscientização do Autismo, a Agência Brasil apresentou uma série de matérias sobre o tema. O autismo é uma condição encontrada em 20 de cada 10 mil nascidos. Manifesta-se antes dos 3 anos de idade e sua causa ainda não é clara, muito embora fatores genéticos sejam considerados sua principal origem.
O diagnóstico é feito a partir da observação do comportamento da criança. Normalmente, os pais detectam algum traço de indiferença ou isolamento excessivos. Resistência ao aprendizado e às mudanças de rotina, uso de objetos de forma incomum, inexistência de medo em situações potencialmente perigosas, agressividade e hiperatividade são alguns sintomas de autismo. 
Fonte: Agência Brasil




Entrevista: Jaques Wagner

O governador da Bahia, Jaques Wagner, do PT, diz que se inventou no Brasil uma tradição, uma "regrinha", segundo a qual, depois de dois mandatos, os governadores sem direito à reeleição precisam concorrer ao Senado. Ele não deve seguir este caminho em 2014. Seu futuro pode ser um ministério num eventual segundo governo Dilma Rousseff ou mesmo atender ao pedido da presidente e se lançar a deputado federal.

Mas tem uma "regrinha" não escrita que o governador da Bahia aponta como uma coincidência que diria muito sobre a escada política rumo à Presidência da República. Um novo candidato do governo à sucessão presidencial é sempre um ministro.

Foi assim com Itamar Franco, que elegeu seu ex-ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, em 1994. Ocorreu com o próprio FHC, cujo nome para sucedê-lo, foi seu então ministro da Saúde, José Serra, derrotado na eleição de 2002. Aconteceu também com Luiz Inácio Lula da Silva, que escolheu Dilma, sua ministra-chefe da Casa Civil, em 2010.

Foi com esta lógica que Jaques Wagner tentou demover o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, do PSB, de sair da base aliada e disputar a corrida presidencial contra o PT, no ano que vem. Numa conversa que durou longas seis horas, no fim de fevereiro, Wagner e Campos analisaram o cenário e levantaram hipóteses. O principal conselho do petista ao colega foi: costure seu projeto "por dentro". Por este plano, o governador de Pernambucano desistiria de 2014 e tentaria ser ungido o candidato da coalizão em 2018. Para isso, deveria batalhar para ser o ministro de uma Pasta forte.

Campos, como se sabe, evita depositar confiança na generosidade alheia. Mas Wagner afirma que, depois de 16 anos no poder (caso vença a eleição no próximo ano), seria natural, sim, que o PT ceda a cabeça de chapa a uma legenda parceira. "Acho que 16 anos em política é um número mágico, até porque eu ganhei do grupo do PFL [hoje DEM] quando eles completaram 16 anos [de poder na Bahia]. O PT quando completou 16 anos perdeu a Prefeitura de Porto Alegre. Tem a chamada fadiga de material", afirma Jaques Wagner.

Ao mesmo tempo, o governador reconhece que nenhum partido oferece a cabeça de chapa "graciosamente". Em entrevista exclusiva concedida ao Valor, Wagner lembra outra lógica que regeria as disputas eleitorais. "A racionalidade da política é governo e oposição". Logo, o melhor caminho para Eduardo Campos, se ele não quiser costurar sua candidatura por dentro, é se transformar num candidato de oposição. É para ela que os votos desaguarão, caso a economia vá mal, diz o governador, que reconhece ser ele próprio uma opção para a Presidência em 2018.

"Dentro do PT, se fizer uma lista de três, quatro nomes para 2018 o meu está no meio. Não é uma obsessão. Pois desejo alimenta a alma; obsessão cega. Quando vira obsessão, começa a fazer bobagem", afirma Jaques Wagner, que tem viajado pelo exterior para buscar investimentos para seu Estado, cujo PIB em 2012 foi de 3,1%, contra 0,9% do nacional. A seguir, os principais trechos da entrevista:



Valor: Como estão os investimentos na Bahia?

Jaques Wagner: Somos o terceiro investimento alemão no país, depois de São Paulo e Paraná. Isso por conta do investimento da Basf, o maior feito de uma vez só, nos cem anos da empresa no Brasil. É um investimento na cadeia acrílica no Polo Petroquímico de Camaçari, que termina no superabsorvente. Por conta disso, a Kimberly-Clark já está começando a produzir na Bahia. É a maior produtora mundial, já está programando em dezembro a começar a duplicar, por conta do mercado nordestino. Creio que eles estão com um olhar pro Nordeste, por ser a região que mais cresce. Nós mesmos [a Bahia] crescemos 3,1% contra 0,9% [do país, em 2012]. Foi o segundo no Nordeste, o Ceará cresceu 4%.

Valor: E a previsão para 2013?

Wagner: Estou fazendo a conta deste mesmo tanto. Porque a base de cálculo vai apertando. No PIB industrial nós crescemos 4,2%. Foi o maior índice do Brasil, seguido de Goiás, com 3,8%.


"O adversário mais forte de Dilma será o candidato da oposição, não sei se Eduardo vai aceitar esse lugar"


Valor: Os empresários não se queixam da regulação?

Wagner: Já me perguntaram algo semelhante. Se eu teria sentido uma queda nesta demanda. O volume do que a gente tem encaixado, implantado e por implantar ao todo representa 160 empresas. A taxa de procura é muito grande. Óbvio que as reclamações vêm, mas não junto com a desistência. Reclamam da lentidão nas licenças ambientais, de muita paralisação quando é obra pública, de infraestrutura, por conta do Ministério Público etc.

Valor: Por que o senhor acha que há um encantamento dos empresários por estas candidaturas de oposição ou nem tanto assim, como a de Eduardo Campos?

Wagner: Nenhum empresário, em qualquer lugar do mundo, gosta de um poder muito forte. Porque pode oprimir, e o Estado mandar na sociedade. Fazer o jogo do contraponto é um jogo super-sadio da democracia. Eduardo Campos é meu amigo, tive uma longa conversa com ele e não vejo nenhum problema na pretensão dele, porque o político que diz que não tem pretensão já morreu ontem. Ele não pode fazer outra coisa se não dizer que quer. O vento está batendo. Ele vai recolher a vela?

Valor: Não é arriscado?

Wagner: Se o cara tomar gosto e tiver a decisão, não tem quem segure. A mesma coisa é o empresário. Na hora em que resolve fazer um investimento, mil pessoas dizem assim: "Você está maluco, vai dar errado". O risco é próprio da atividade política e empresarial. É um cara que tem potencial, mas prefiro que ele desenvolva o potencial dentro do grupo. Muita gente tem se encantado com essa novidade porque como o candidato de oposição [o senador mineiro Aécio Neves, do PSDB] não encanta até agora, não agrega, não mostra substância, fica sem graça se não tiver contraponto.

Valor: Os empresários estão nesta corte ao Eduardo Campos para pressionar a presidente?

Wagner: Não para pressionar, mas para dizer que tem uma taxa de correção de caminho que eles gostariam. É óbvio que entre isso e concretizar uma candidatura é um longo caminho. Fui lá conversar com ele e dizer: "Você deveria tentar fazer isso por dentro". É óbvio que alguém pode dizer: "Mas o PT nunca vai abrir a possibilidade para alguém de outro partido". Não acho. Sou defensor de que o PT pense também nesta hipótese. Porque nós não podemos ser um grupo político de um partido só. Tem que admitir a prosperidade de outros parceiros. Não é agora porque ela [Dilma] carrega a legitimidade da reeleição. O tempo certo da discussão é 2018. O PT vai estar completando 16 anos no poder e 16 anos em política é um número mágico, até porque eu ganhei do grupo do PFL quando eles completaram 16 anos. O PT quando completou 16 anos perdeu a Prefeitura de Porto Alegre. Então, acho que tem a chamada fadiga de material.

Valor: Mas ele, talvez com toda razão, não acredita em acordo com quatro anos de antecedência.

Wagner: Entre os nossos aliados ele é o nome mais colocado. Tem uma longa trajetória. Ser candidato agora também não garante nada para ele [tornar-se nacionalmente conhecido e vencer] em 2018. O Ciro [Gomes, em 1998 e 2002] foi candidato, bem votado, e não prosperou. O Garotinho [em 2002] foi bem votado e não prosperou. Ele também tem este problema. Apesar de termos 30 partidos, as pessoas, querendo ou não, trabalham com o conceito governo e oposição.

Valor: Mas o PT cederia para o Campos em 2018?

Wagner: Ninguém cede o poder graciosamente. O PSDB desde que FH foi candidato em 1994 nunca cedeu lugar para o DEM para puxar a fila. Agora estão discutindo o Serra, o Alckmin, e não o Agripino [Maia, senador do DEM] ou qualquer outro nome. Ninguém oferece. Mas todos os meus aliados cresceram muito nos seis anos de governo, o PDT, o PSB, o PSD que não existia lá. Eu gosto de ter aliado forte. Aí depende da sua competência de fazer a gestão da aliança.

Valor: É possível o Eduardo Campos montar palanques com dissidentes do PSDB, a exemplo da aproximação dele com o prefeito de Manaus Arthur Virgílio?

Wagner: Na racionalidade - e a política não é só racionalidade - o grande caminho é se ele se transformar num candidato de oposição. É o jogo pra ser jogado. Óbvio que ele poder ir como terceira ou quarta via. Acho que vai ter o PT, o PSDB e a Marina [Silva], que tem um espaço próprio, numa espécie de negação da política, aliada a uma bandeira ambiental e evangélica, e teve resultado espetacular [votação de quase 20% em 2010].

Valor: Ela repete esse resultado?

Wagner: Eleição envolve muita emoção. Ela ganhou em Brasília, mas não no Estado dela [Acre].


"O problema é que Dilma é muito ciosa e quer saber de tudo antes de ir para a rua, mas é que ela tem urticária com o malfeito"


Valor: O que há de racional?

Wagner: O candidato mais forte para enfrentar a Dilma é o candidato de oposição, em tese do PSDB. Se o Eduardo vira o comandante do PSB, do PSDB, do DEM... Mas aí não sei se ele vai aceitar ou não. São decisões dele. Porque montar palanques nos Estados é outro problema. A lógica dos partidos no Estado é crescer; a lógica de quem está na campanha majoritária é ganhar. Essas duas lógicas nem sempre se combinam. Quem ganhou em São Paulo? Não foi o Russomanno [PRB]. Tinha tudo para ganhar, estava na frente, era outsider na dicotomia PT e PSDB.

Valor: Mas o senhor acha que o PSDB que governou o país duas vezes e tem oito governos estaduais abriria para o governador de um partido bem menor?

Wagner: Só se eles acharem que não tem ninguém para concorrer. Não quero fechar nenhuma porta porque tenho uma missão muito clara. Quero manter o Eduardo na aliança. Vou trabalhar por isso.

Valor: Foi esse seu objetivo nesta conversa de seis horas?

Wagner: Não tinha missão dada por ninguém. Eu, na verdade, fui lá [em Pernambuco] para um debate [em seminário] da [revista] "Carta Capital". Sentamos para uma conversa de uma hora e meia, e saí de lá, da governadoria, meia-noite e meia. Fui fazer intriga do bem. Ele é um quadro do lado de cá, tem história. Agora, é óbvio que tem que ter espaço para crescer.

Valor: O que vocês conversaram?

Wagner: De coisas pessoais até a conversa que ele tinha tido com a Dilma, que ele achou excepcional, e aí ficamos conversando sobre estas hipóteses todas. Porque ser vice não necessariamente é o caminho para ser presidente. Quem é que foi candidato do Fernando Henrique? O ministro dele da Saúde [José Serra, em 2002]. Quem é que foi a candidata do Lula? A ministra da Casa Civil. Então, me parece que é muito mais próprio para alguém que queira se projetar, fazer uma conversa, que não é agora naturalmente.

Valor: O senhor propôs essa possibilidade de ele vir a ser ministro ou foi ele que sugeriu?

Wagner: Não, isso tudo fui eu que falei. Ele ouviu e deve ter ficado refletindo.

Valor: Em que ministério seria mais apropriado?

Wagner: Não sou eu que vou escalar os ministros da Dilma. Evidentemente eu converso com ele e vou para ela [Dilma] e digo: "Olha, tive uma conversa ótima, ele adorou a sua conversa".

Valor: E por que ele adorou a conversa com a Dilma?

Wagner: Não entrei em detalhes, mas ele disse que foi uma conversa muito franca, na qual ela tocou em pontos como esse, da importância do sucesso dele, acho que foi uma coisa muito do tipo, "não tenho interesse nenhum em empurrar ninguém para fora". Ele me disse que gostou bastante da conversa. Teve o episódio da [disputa entre PT e PSB pela] Prefeitura do Recife que aí foi um show de coisas equivocadas feita por todo mundo. Então aquilo é que acendeu muito a ideia de que o Eduardo está preparando a luta contra o PT. Mas o PT está no governo dele em Pernambuco, como ele está no governo da Dilma, como eles estão no meu governo, e como devem estar em outros governos do PT.

Valor: Como se iniciaram as conversas com o Eduardo?

Wagner: Evidentemente não sou articulador político da Dilma, mas converso muito com ela. No réveillon, ela foi passar lá [na Bahia] e o chamou para almoçar. Ele foi com Renata [mulher de Campos] e eu fui com Fatinha [mulher de Wagner]. E também foi uma conversa de quatro horas, quatro horas e meia. Mas foi uma conversa em que ninguém falou de eleição de 2014. Depois, ela o chamou para uma conversa que eu diria mais política, lá no Palácio da Alvorada, entre janeiro e fevereiro. Foi a conversa que ele relatou para mim.

Valor: Mas a decisão política do Eduardo Campos de se candidatar já não está tomada?

Wagner: Ele me disse que não. Alguns acham que dessa conversa que tivemos em fevereiro para cá, a sucessão de declarações dele ou de aliados dele aponta que teria tomado uma decisão. Só ele que sabe e vai anunciar. [O encontro entre os governadores foi em 25 de fevereiro]

Valor: Ele não cresceria politicamente ao receber apoios de partidos descontentes, de empresários?

Wagner: Esse campo intermediário é fundamental, mas se chegar maio e junho, perto da época das convenções, e ele tiver 5%, 6%, 7% não é todo mundo que vai botar as suas fichas. Principalmente no mundo da política. Porque uma coisa é o comandante do partido. Outra coisa é em cada Estado e os deputados federais e estaduais que querem se reeleger e dependem de um palanque forte. Se não tiver a visualização de um palanque forte, não sei nem se terá unidade no PSB inteiro. Tem lugar em que o aliado está doido para que ele seja candidato; e tem lugar que é exatamente o contrário, em que o cara está todo encaixado numa aliança de governo e que prefere não quebrar isso. Esse é o problema.

Valor: O que falta à Dilma fazer?

Wagner: Do ponto de gestão dela seria - qualidade pode virar problema - não ser tão ciosa como ela é de cada coisa que vai acontecer no governo dela.

Valor: Por exemplo.

Wagner: De tudo, porque ela quer ver o que está acontecendo. O boi só engorda com o olho do dono. Eu diria que isso a Dilma tem até porque ela vem de ser chefe da Casa Civil. Mas é a cabeça dela. E repare que a cabeça dela vem ao encontro de tudo o que a sociedade quer. Ela tem urticária com malfeito.

Valor: Ela deve descentralizar?

Wagner: Não estou falando em descentralizar porque os ministérios existem. O problema é que ela, eu diria, quer saber, antes de ir para rua, de tudo. Agora, não é só ela, não. Temos um momento mundial e temos o Estado brasileiro. Alguém fala aqui com tranquilidade quando um órgão de controle paralisa uma obra? O [empresário Jorge] Gerdau falou comigo: deveria ser proibido parar uma obra. Quem para não é o governo federal. Quem para é Tribunal de Contas e ai do governo federal se disser que é contra. É um bom debate saber qual é o melhor ponto de equilíbrio. Porque vivemos a República da desconfiança. Todo mundo é ladrão até prova em contrário.

Valor: Na Bahia, o PMDB pode aglutinar a oposição em torno da candidatura de Geddel. Neste caso, ele pode dar um palanque para um adversário de Dilma?

Wagner: Fica meio perna quebrada. Porque se o Michel [Temer, vice-presidente da República, líder do PMDB] estiver lá de vice [na chapa], não vai ter nem o Michel no palanque dele. Não acho que isso vai acontecer. O [ACM] Neto [prefeito de Salvador] está fazendo a conta dele para 2018.

Valor: Quem é o seu candidato à sucessão?

Wagner: Por enquanto, a gente ainda não escolheu.

Valor: E o senhor, o que fará?

Wagner: Eu, quase certamente, irei até o fim do mandato.

Valor: Aí o senhor vai para o ministério.

Wagner: Primeiro, é preciso ela [Dilma] ganhar. Depois, me convidar.

Valor: O senhor tem alguma dúvida de que ela ganhando o senhor iria para o governo?

Wagner: Posso ir para um ministério ou para uma posição mais da equipe em torno dela. Ela até gostaria que eu fosse ao menos deputado federal, para ter mandato no governo. Posso até ser, mas 90% [da probabilidade] hoje é ir até o fim do governo. É que se criou essa regrinha: presidente da República acaba o segundo mandato, e acaba. Prefeito acaba o segundo mandato, e acaba. Como governador coincide com eleição para senador, aí se criou a regrinha: eleito, reeleito, senador. Tem nada a ver.

Valor: Num eventual segundo governo Dilma, como ministro, o senhor se torna, de imediato, o candidato número 1 na sucessão dela.

Wagner: Repare: hoje, dentro do PT, se fizer uma lista de três, quatro nomes para 2018 o meu nome está no meio. Mas eu acho que o caminho é pegar a segunda geração do PT e botar para começar a ocupar.

Valor: Quem é a nova geração?

Wagner: Eu falo que tem que começar a ocupar, tem o Haddad [prefeito de São Paulo], por exemplo. O meu nome está, não estou tirando da lista. Essa não é uma obsessão minha. Eu brinco: desejo alimenta a alma, obsessão cega. Quando vira obsessão começa a fazer bobagem para caramba.

Valor: Lula não poderia voltar?

Wagner: Não vejo o Lula voltando em 2018. Não tem cabimento, porque a gente tem um compromisso que a democracia brasileira não pode ser dependente de um ou de dois nomes, tem que ser cada vez mais madura. Eu acredito muito em partido político, acho que um dos problemas que a gente tem é que a gente tem poucos partidos políticos. Os dois grandes que surgiram depois da ditadura foram o PT e o PSDB.



© 2000 – 2012. Todos os direitos reservados ao Valor Econômico S.A.