A tradição de conciliar é uma força contraditória do Brasil. Ora, nos
faz avançar, porque a conciliação é mesmo o melhor caminho. Ora, é um
âncora que nos prende ao atraso, porque conciliar também pode ser
congelar problemas que merecem enfrentamento.
Na virada dos anos 70 para os 80, a ditadura militar de 1964 começou a
cair de madura. Já havia falido a eficiência econômica do regime, hoje
apontada como uma suposta virtude daqueles tempos. A Lei da Anistia de
1979 e o governo Figueiredo foram os últimos suspiros de uma ditadura
que estava morrendo.
Para tentar ver com equilíbrio aquele período, invoca-se frequentemente o
mito da competência tecnocrática do regime dos generais. Mas o fato é
que os militares foram incompetentes na política e na economia.
Será que a nossa infraestrutura não teria prosperado muito mais com
democracia? As tais obras faraônicas aconteceram pelos méritos do
regime? Itaipu só foi construída por causa da ditadura? Ou muitas dessas
obras foram projetos mal pensados e mal executados, como a
Transamazônica e o acordo nuclear com a Alemanha?
Difícil enxergar algo de bom naqueles tempos, com exceção das músicas do
Chico e da voz da Elis. A gente deve lembrar que uma geração inteira de
líderes jovens foi morta, presa e torturada. E muitos que não aderiram à
luta armada tiveram o mesmo destino. O Brasil perdeu talentos. Deixou
de avançar porque a democracia foi interrompida. Não havia risco de
golpe de esquerda nem de ditadura comunista. O país piorou com o golpe.
Hoje é um dia histórico. Vinte e sete anos após o fim oficial da
ditadura, foi instalada a Comissão da Verdade. Antes tarde do que nunca.
Invocando nossa tradição conciliatória, setores da sociedade querem que
os dois lados sejam investigados, referindo-se aos agentes da ditadura e
aos militantes de organizações de esquerda.
Como já registrado neste espaço em colunas anteriores, não dá para
tratar os dois lados com igualdade. Os militantes de esquerda, sejam os
que pegaram em armas, sejam os que optaram pela resistência pacífica, já
foram perseguidos, presos, torturados, mortos e exilados. Isso não
aconteceu com os agentes do Estado que, ilegalmente, investigaram,
prenderam, torturaram e mataram. O foco deve ser a ditadura.
Pela lei que a criou, a Comissão da Verdade não terá poder de punição.
Poderá investigar para relatar o que aconteceu. Eventuais punições
dependerão de outras leis e de outras interpretações da Justiça --algo
que parece, hoje, bem distante da realidade.
Portanto, não existe hipótese de revanchismo. Mas há, sim, a
oportunidade para uma revanche da democracia. Como disse a presidente
Dilma Rousseff, "merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e
parentes e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e
sempre a cada dia".
Essas famílias, presidente, merecem a verdade. Mas também a merecem
todos os brasileiros, sobretudo os mais jovens. Para que nunca mais algo
assim aconteça no Brasil.
Kennedy Alencar escreve na Folha.com às sextas. Na rádio
CBN, é titular da coluna "A Política Como Ela É", no "Jornal da CBN", às
8h55 de terças e quintas. Na RedeTV!, apresenta o "É Notícia", programa
dominical de entrevista, e o "Tema Quente", atração diária com debate
sobre assuntos da atualidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Quando for comentar, seja respeitoso! Boas maneiras não prejudicam ninguém.