O feriadão desta vez foi gordo, gordíssimo. E hoje, na ponta inicial do feriadão, o que é mesmo que se comemora? A proclamação da República, ou seja, nossa passagem de império a república. Sei que para muita gente o sonho dourado ainda é uma ditadura, qualquer que seja (com um imperador ou rei, um general, um Médici, um Castro, ou qualquer dessas coisas), pusilânime como qualquer, qualquer ditadura (de direita, de esquerda, de centro --ou de nada, como, aliás, as ditaduras soem ser), em que os delírios do ditador de turno são a lei.
Pois bem. Malgrado a vontade de muita gente, o Brasil, ao menos no nome e no papel, é uma república. O ideal mesmo seria termos, literalmente, uma república, ou seja, uma "res publica", expressão latina que dá origem à palavra "república" e que significa "coisa pública". A república é república justamente porque nela o que está acima de tudo não é a vontade, a opinião ou o credo do ditador de plantão, mas o interesse público. Por acaso não é esse o cerne do que julga o Supremo neste momento? O famigerado mensalão não foi a apropriação de dinheiro público para fins partidários, pessoais etc., etc., etc.?
O caro leitor já ouviu, por exemplo, alguém elogiar a "postura republicana" de determinada autoridade (o/a presidente da República, por exemplo) na condução de determinada questão? O que significa esse elogio? O que se elogia é a atitude da autoridade que põe em primeiro plano o interesse público, e não o pessoal ou partidário, por exemplo.
Há oito anos, escrevi sobre o tema "res publica" neste espaço. Tomando por base o significado literal de "república", abordei alguns fatos da época e concluí que ainda estávamos longe do que realmente é uma república. E hoje? A situação mudou? A nação brasileira já sabe diferenciar o público do privado e sobrepõe aquele a este? Nosso espírito já é definitivamente republicano?
Não vou entrar nessa discussão, não, caro leitor. Pense e conclua. Eu só queria levantar a lebre a partir do que é precípuo na minha função (comentar e analisar fatos da língua). Permito-me lembrar-lhe o que dizia o grande educador Paulo Freire: "A leitura do mundo precede a da palavra". No caso específico do que estamos abordando, eu diria que é possível fazer os dois percursos, e isso certamente fica mais claro e mais funcional quando se sabe "ler", por exemplo, uma palavra como "república", que, em seus empregos formais, ainda significa o que nos ensina a etimologia (parte dos estudos linguísticos que se ocupa da origem e da evolução das palavras).
É preciso tomar cuidado com os falsos encantos da etimologia. Há muito chute por aí. Obras sérias (como o "Houaiss", por exemplo) são claras quando é clara a origem da palavra; quando não é, nada de tiro para qualquer lado ("origem obscura" é o que se diz quando não há documentação suficiente).
O desmonte cirúrgico da palavra e a associação de seus elementos mórficos com os de outras palavras podem aumentar a intensidade da absorção do que se lê. Se tudo isso for precedido pela leitura do mundo e associado a ela, pode-se começar a pensar na concretização da função (ou das funções) da leitura, do estudo, do aprendizado. O caso de república é só um exemplo, um ótimo exemplo, não lhe parece?
Depois disso, não se torna mais interessante saber por que o Brasil é uma república? E por que nosso país se chama República Federativa do Brasil? Epa! O que é "federativa", que é da família de "federação", "confederação" etc.? Agora é sua vez. Vá em frente. É isso.
Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".
Fonte: Folha de SP
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