segunda-feira, 15 de abril de 2013

Um CPC democrático.


Caros e caras,

na Revista Veja que circulou neste fim de semana, o professor Antônio Cláudio da Costa Machado volta a apresentar suas críticas ao projeto de novo CPC, cujo relatório será lido na próxima quarta-feira. O ilustre professor qualifica o projeto de autoritário. Apresenta, nesta reportagem, cinco críticas.
Gostaria de apresentar uma breve resposta a cada uma delas.

1) Critica a ausência de pressupostos específicos para a concessão de medida cautelar como o arresto. A crítica, com todo o respeito, não procede. A possibilidade de concessão de medidas cautelares com base nos pressupostos genéricos da probabilidade do direito e do perigo da demora existe desde 1973 – é o conhecido poder geral de cautela (art. 798, CPC/1973). Esta cláusula geral autoriza a concessão de qualquer medida cautelar atípica, inclusive o arresto atípico – o que fez com que Galeno Lacerda dissesse, há trinta anos, que um sistema em que há poder geral de cautela torna desnecessária a especificação de pressupostos para a concessão dessa ou daquela medida cautelar. O projeto apenas preserva o poder geral de cautela.

2) Critica a ausência de recurso contra as decisões em matéria de prova. A crítica não procede, por duas razões: a) expressamente se prevê agravo de instrumento contra decisão que redistribui o ônus da prova (art. 1028, XIII, do projeto); b) as interlocutórias em matéria de prova são recorríveis na apelação (art. 1022, §2º, projeto). Atualmente, as decisões sobre prova são impugnáveis por agravo retido, que, como todos sabem, tem de ser reiterado na apelação, sob pena de não ser conhecido. O projeto exige que o interessado demonstre a sua irresignação no primeiro momento em que couber falar nos autos, por meio de mecanismo semelhante ao do “protesto” da Justiça do Trabalho – que funciona muito bem há anos e que se parece com o agravo retido, embora mais simples. Depois, cabe ao interessado reiterar a sua irresignação na apelação. Pergunto: em que esse sistema difere do atual? A decisão sobre prova é irrecorrível, na linha do que foi dito pela Revista Veja? Não, ela é recorrível no mesmo padrão em que é hoje.

3) Critica a ausência de efeito suspensivo, como regra, na apelação. O professor, no particular, deve ter examinado uma versão mais antiga do projeto: a versão que será lida na próxima quarta-feira preserva o efeito suspensivo da apelação, ressalvadas as hipóteses atualmente existentes em que ela não tem efeito suspensivo automático (art. 1025, caput e §2º, do projeto). Prevê-se, porém, a possibilidade de o relator retirar o efeito suspensivo da apelação, se o apelado demonstrar que, em razão da execução provisória da sentença, não há risco de dano irreparável ao apelante e que é improvável o acolhimento do recurso.

4) Critica a possibilidade de tutela antecipada liminar sem urgência, com base apenas em documento suficiente. A crítica, no particular, é simplesmente equivocada. O projeto traz apenas duas hipóteses de tutela antecipada liminar sem urgência (tutela antecipada da evidência: art. 306, par. ún., do projeto): a) no caso de ação de depósito (repetindo regra que já existe atualmente, decorrente do art. 902, I, CPC/1973, vigente há quase quarenta anos); b) nos casos em que há pedido cujo lastro fático se comprova documentalmente e a tese jurídica afirmada está consolidada em súmula vinculante ou julgamento de casos repetitivos: esta hipótese, embora nova, é totalmente razoável, já que a evidência do direito é, no caso, manifesta.

5) Critica, ainda, a restrição à liminar possessória nos casos de litígios coletivos de posse. No caso, a reportagem simplesmente não explicou a medida, tornando a crítica meramente ideológica. Vou tentar explicar a regra proposta. Atualmente, o possuidor, para ter direito a uma liminar possessória em que se dispensa a demonstração de urgência, precisa ingressar com sua ação possessória em até um ano da turbação ou do esbulho afirmado na petição inicial – regra bem antiga. O projeto mantém a regra, para os casos de conflitos possessórios individuais (Tício contra Caio). Quando a possessória disser respeito a litígio coletivo, propõe o projeto que, para ter direito ao mencionado benefício, o possuidor ingresse com a possessória no prazo de seis meses, contados da data da turbação ou do esbulho afirmado na petição inicial. Se propuser a ação depois deste prazo, antes de examinar o pedido de tutela antecipada, o juiz marcará uma audiência de mediação (art. 579 do projeto). Não se nega a tutela antecipada, mas, tendo em vista a existência de uma coletividade no polo passivo, e o prazo superior a seis meses da turbação ou do esbulho, entende-se que, então, é o caso de ouvi-la, a coletividade, antes da concessão da tutela antecipada. A regra é bem razoável: não se pode querer dar o mesmo tratamento a conflitos possessórios tão diferentes como o individual e o coletivo. Note que, se o possuidor ingressar com a ação possessória em menos de seis meses, terá direito à mesma tradicional liminar possessória sem urgência. De todo modo, pode-se acusar a regra de tudo, menos de autoritária.

O projeto pode ser bom ou ruim.

O que não é correto é acusá-lo de autoritário.

Nunca se debateu tanto um CPC – nossos dois únicos foram produzidos em períodos de exceção, sem debate, foram Códigos outorgados. Eu testemunhei este debate; o Brasil falou e foi ouvido. Mais de mil alterações foram feitas na versão que veio do Senado. Novecentas emendas parlamentares foram apresentadas; mais de trezentas pessoas foram ouvidas em audiências públicas; todas as entidades de classe e associações que apresentaram sugestões foram atendidas, escutadas e, quase sempre, ao menos um dos pleitos foi atendido; professores de todo o Brasil foram escutados – sem protagonismo de qualquer Região. O próprio professor Antônio Cláudio teve várias propostas acolhidas – muitas delas encampadas por alguns deputados, inclusive. Na Comissão de Juristas que auxiliou a Câmara dos Deputados, havia um baiano, um sulmatogrossensse, um pernambucano, um paulistano, um gaúcho, um paraibano e um carioca.

Este será um código sem sotaque.

Jamais, em nossa história, se viu um projeto de lei que atribuísse ao magistrado tantos deveres: a) dever de respeitar a jurisprudência e mantê-la estável (arts. 520-521 do projeto); b) dever de prevenir as partes sobre defeitos processuais, evitando, com isso, decisões de inadmissibilidade mesquinhas e desnecessárias (arts. 76, 322, 945, par. ún., 1023, § 3º, 1030, §3º, 1042, §2º); c) dever de ouvir as partes sobre qualquer ponto relevante para a sua decisão, mesmo que se trate de ponto a respeito do qual poderia conhecer de ofício – versão substancial do contraditório (art. 10 do projeto); d) dever de dar publicidade ao comparecimento informal do advogado ou de qualquer das partes ao seu gabinete (art. 190 do projeto).

Transcrevo os §§1º e 2º do art. 499, o mais belo conjunto de dispositivos do projeto: “§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limita a indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo; II – empregue conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o órgão jurisdicional deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada”.

Esses são dispositivos de um código autoritário?

O projeto resgata, ainda, o protagonismo das partes no processo, dando à autonomia privada um papel no processo civil brasileiro jamais visto: a) prestigia-se a arbitragem (art. 3º, §1º; arts. 345-350 do projeto); b) a autocomposição é extremamente valorizada (art. 3º, §2º; arts. 166-176 do projeto); c) permitem-se acordos de procedimento atípicos (art. 191 do projeto), cláusula geral de autonomia privada processual inédita no direito brasileiro; d) aprimora-se a convenção sobre o ônus da prova (art.  380, §3º, do projeto); e) permite-se a escolha consensual do perito pelas partes (art. 478 do projeto); f) cria-se o negócio processual típico chamado “acordo de saneamento”, permitindo que as partes, principais conhecedoras da causa, levem o processo saneado ao órgão jurisdicional (art. 364, §2º, do projeto).

Tudo isso sem falar no regramento minucioso do benefício da justiça gratuita (arts. 98-102 do projeto) e nas regras de fungibilidade recíproca entre os recursos extraordinário e especial, em enfrentamento direto de importante manifestação da jurisprudência defensiva dos tribunais superiores (arts. 1045-1046 do projeto).

Este Código, no futuro, será inevitavelmente apelidado de “Código das Partes”. Basta lê-lo sem pré-compreensões, que isso se revela com muita clareza.

Não é fácil elaborar um código em regime democrático. Como podem opinar, todos sempre terão algo para divergir e criticar. O projeto não pode ser chamado de autoritário porque não se concorda com alguns de seus dispositivos – que são, por óbvio, opções políticas construídas pelo debate parlamentar. Eu mesmo tenho as minhas críticas: há muita coisa que eu não colocaria no projeto. Mas isso é bom; melhor: é fundamental. O simples fato de que ninguém está totalmente satisfeito é o quanto basta para demonstrar que este projeto é resultado de um processo legislativo democrático.

Como não estamos acostumados com isso, não sabemos reconhecer essa grande qualidade.

Em 14.04.2013.

Fredie Didier Jr. - Professor de Processo Civil da Universidade Federal da Bahia, Livre-docente pela USP.

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