quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Reajuste do salário mínimo em 2013 leva a aumento real de 70% em dez anos

O reajuste de 9% no salário mínimo, anunciado neste final de ano pelo governo, levará a 239% o reajuste acumulado em dez anos, para uma inflação (INPC) estimada em aproximadamente 99%. Com isso, o aumento real dado ao mínimo nesse período vai superar os 70%. O Dieese estima que apenas o acréscimo de R$ 56 (de R$ 622 para R$ 678) deve representar um acréscimo de R$ 32,7 bilhões na economia. Segundo o coordenador de Relações Sindicais do instituto, José Silvestre, o impacto na arrecadação tributária sobre o consumo ficará em torno de R$ 15,9 bilhões.

“É um estímulo para a economia. E é talvez a política pública que atinge o maior número de pessoas, um instrumento que ajuda na distribuição de renda”, afirma o economista. Ele lembra que há no país aproximadamente 45,5 milhões de pessoas que têm, em alguma medida, o salário mínimo como referência de seus rendimentos. A soma inclui aposentados, empregados, trabalhadores por conta própria e trabalhadores domésticos.

Silvestre enfatiza a importância de existir uma política de reajustes para o salário mínimo. “Você pode até discutir a questão do critério, mas o fato de ter uma regra clara não deixa à mercê do governo que entra ou sai”, comenta. Ele também desconsidera a tese dos críticos dessa política, de que os aumentos reais “quebrariam” a Previdência ou aumentariam a informalidade no mercado de trabalho. “A história tem mostrado o contrário”, diz o economista.

A Lei 12.255, de 2010, estabeleceu diretrizes para a política de valorização do salário mínimo de 2012 a 2023, o que deveria ser feito por projeto de lei. O PL 382, de 2011, fixa critérios até 2015: reajuste pelo INPC e, a título de aumento real, a variação do PIB de dois anos antes. Em 2014, por exemplo, além da inflação, seria aplicado o percentual equivalente ao PIB de 2012. De acordo com o Dieese, se a economia crescesse 5% ao ano até 2023, o mínimo dobraria em termos reais, atingindo aproximadamente R$ 1.400.

O valor oficial segue abaixo das necessidades do trabalhador, mas não se pode desconsiderar o incremento dos últimos anos, acrescenta o técnico do Dieese. “O salário mínimo necessário chegou a ser quase oito vezes maior. Hoje, essa relação é de quatro vezes”, lembra. Segundo o dado mais recente, relativo a novembro, o mínimo necessário para um trabalhador e sua família adquirirem os gêneros essenciais deveria ser de R$ 2.514,09. Mas, com o aumento anunciado, a relação entre mínimo e cesta básica será a melhor desde 1979. Em 1995, o mínimo comprava 1,02 cesta – em janeiro, passará comprar 2,26 cestas.

Fonte: Rede Brasil Atual

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Com a palavra: Oscar Niemeyer

Entrevista em 1994 ao jornal Folha de São Paulo:

Família

Minha família vinha de Maricá [RJ]. Meu avô Ribeiro de Almeida nasceu lá. Já o meu avô Niemeyer não o conheci. Sempre morei com esse avô Ribeiro de Almeida. Ele foi juiz de direito em Maricá e depois foi para o Rio.

Ele chegou a ministro do Supremo, e a casa era muito frequentada. Ele era um sujeito correto. De modo que, em tempos de esculhambação, a lembrança dele é muito boa.

Para visualizar o infográfico que acompanha essa reportagem, é preciso baixar o Flash Player.

Morávamos numa casa feita para minha mãe. Embaixo ficavam o meu avô e os dois filhos. Em cima, nós: eu, minha mãe, meu pai e irmãos.

A gente vivia tranquilo, mas não éramos ricos. Depois de ser ministro, meu avô morreu deixando só uma casa hipotecada. Mas vivíamos bem, e eu lembro da casa grande, da maneira que a gente vivia.

Religião

Fui para o colégio dos padres barnabitas e lembro como resisti a essa ideia da religião, que era a católica. Tinha missa em casa. Mas nunca acreditei nessas coisas porque achava o mundo injusto e o ser humano tão frágil.

Diversões

Lembro-me de dois pianos, um no hall de entrada e outro na sala de visitas. O pessoal gostava de música, minha mãe cantava, minhas irmãs tocavam piano, eu jogava futebol na rua.

Boêmia

Morava perto do Fluminense, era o clube que frequentava.

Minha mocidade era o Fluminense, era o Clube de Regatas --cheguei a correr numa regata!--, era o Lamas [restaurante tradicional, na Lapa], onde a gente se reunia. Era feito um escritório. A gente ia para lá e jogava bilhar, batia papo, ia para a zona da Lapa.

Eu me lembro da Lapa. A gente ia ao cinema na avenida Rio Branco e me incomodava ver na orquestra um velhinho, que tocava violino.

Depois a gente pegava o bonde e saltava na Lapa. Tinha aqueles cabarés, um ar de vadiagem, de briga.

Depois, voltávamos para o Lamas. Lembro de quando tinha que acordar cedo, quem me acordava era o garçom do Lamas. Ele ligava para casa.

Às vezes, a gente tinha uma festa e, em vez de ir, ficava jogando bilhar até de manhã.

Vida adulta

Nunca me preocupei com nada até me casar, em 1928 [referindo-se ao casamento com Anita Niemeyer Soares, que morreu em 2004, aos 94 anos]. Envelhecemos juntos. Nesse período todo, eu não pude me queixar da vida.

Ao me casar, comecei a pensar na vida e entrei na escola. Lembro que fui trabalhar com meu pai, que tinha uma tipografia. Gostava de desenhar, e o desenho é que me levou à escola de arquitetura.

Anos de formação

Já era casado [quando entrei para a Escola de Belas Artes]. Quando me casei, estava ajudando meu pai. Eu tinha uma prima, uma senhora velha, que morou sempre com meus avós, que tinha uma casa. Vivíamos do aluguel da casa.

Eu trabalhava de graça para o Lucio Costa. Eu queria aprender, porque na escola ainda é assim. Durante a escola, o sujeito vai trabalhar num escritório de arquitetura, de construção, e recebe um salário que vai ajudando a passar esse tempo.

Mas eu, apesar de casado, não quis salário, queria aprender. Como me disseram que o escritório do Lucio era o melhor, foi lá que fui trabalhar e onde fiquei uns anos.

Le Corbusier, o papa

Eu conheci primeiro o Lucio [Costa]. Depois, foi o [Gustavo] Capanema [ministro da Educação e da Saúde entre 1934 e 1945]. Em seu governo, ele abriu as coisas. Surgiram Drummond, Mário de Andrade, expoentes que aquele clima provocou.

O Le Corbusier [arquiteto franco-suíço, um dos principais nomes do modernismo; 1887-1965] veio para fazer umas palestras e o projeto da Cidade Universitária.

Nesse meio tempo, o Lucio pediu para ele examinar o projeto [do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Capanema, considerado marco inicial do modernismo no país, 1947]. Então, ele fez outro projeto, linear. Ele é o autor. Sempre dissemos isso. Fomos uma equipe unida.

O mais importante foi o contato que eu tive com os livros dele. Porque o que ele escreveu influenciou gerações. Depois que ele saiu daqui, me senti mais livre. Naquele tempo, a gente estava no caminho da arquitetura moderna. Ainda presos a preconceitos. Sua ideia de que arquitetura é invenção me libertou.

Projeto da sede da ONU

Fui convidado, com dez arquitetos estrangeiros, para projetar a sede da ONU. Fui como representante do Brasil e, no dia em que cheguei, o Corbusier me telefonou.

Fui encontrá-lo na Quinta Avenida. Ali ele explicou que havia dúvidas sobre o projeto dele --cada um apresentava um projeto-- e queria ver se eu ficava do lado dele.

Disse que sim, ele era o mestre mesmo. Então, fui para o escritório e comecei a ajudar.

Passaram-se os dias e o diretor do serviço me chamou e disse: "Oscar, chamei você para fazer o projeto como os outros, não para ajudar o Corbusier".

Disse: "Bom, mas eu acho que o projeto dele é o melhor". Ele respondeu: "Não, eu preciso ver o seu". Falei com Corbusier, que disse: "É melhor você fazer o seu, estão esperando".

Aí fiz, e meu projeto foi aprovado. Então ele disse que queria que botasse a assembleia no meio [como previa o projeto de Corbusier]. Eu não queria, mas ele insistiu. Sentia que estava meio constrangido.

Então apresentamos juntos nossos projetos, que foram a base para a construção.

Ele era um grande arquiteto, só isso. Era incompreendido e egoísta. Comigo ele fez uma malandragem. Mas era um grande arquiteto.

Ângulo reto x curva

Eu não tinha muito apreço pelo ângulo reto, que Le Corbusier defendia. Achava que a arquitetura feita em concreto podia ser diferente.

Quando o espaço é maior, e o vão é grande, o concreto armado sugere a curva. De modo que a curva não é coisa imposta pelo homem. É algo que surge naturalmente.

Quando fiz Pampulha, achavam que era contra o ângulo reto. Não que não o aceitasse, mas achava que era uma arquitetura mais rígida, fria, que Mies van der Rohe [arquiteto alemão, diretor da Bauhaus nos anos 1930] tão bem fazia.

Construção de Brasília

Quando cheguei lá no fim do mundo, a terra era agreste, hostil, não tinha árvore, não tinha nada.

Na época, o divertimento era a Cidade Livre. Tomávamos caipirinha, ríamos. Todos trabalhando juntos --operários, engenheiros, arquitetos--, dava a sensação de que o mundo seria melhor.

Quando inaugurou, veio a muralha separando pobres e ricos --e Brasília passou a ser uma cidade como as outras.

Por quatro anos andamos na estrada que estavam construindo. Pegávamos o carro a qualquer hora. Tive um desastre, fiquei um mês machucado e quase morri.

O avião que ia para Brasília levava três horas. Na primeira viagem do Juscelino, fui junto. Lembro de sentar ao lado do Lott [general Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra de Kubitschek]. Ele disse: "Dr. Niemeyer, o senhor vai projetar prédios bem clássicos para nós, não é?". Eu respondi: "General, o senhor, na guerra, prefere arma clássica ou moderna?".

Evolução de sua obra

Quando eu fui para a Pampulha, eu queria lutar contra o ângulo reto. Depois eu fui para Brasília. Mas, antes mesmo, já senti que o racionalismo não tinha sentido. Os que lutavam por racionalismo, pureza estrutural contra a arquitetura livre, mudaram.

A arquitetura de que eu gosto é: cada um faz o que quer. É a que utiliza técnica em todas as possibilidades.

Para ser arte, ela tem de primeiro ser diferente e, depois, ser uma coisa que cria espanto, beleza.

A arquitetura que faço não aceita regras. Procuro fazer lógica, funcional, mas criando, partindo de um desenho, de uma ideia, de um croqui. Mas que seja coisa diferente.

Beleza e praticidade

Acho que o prédio deve ser correto. Mas para chegar a ser uma obra de arte, ele tem de ser bonito. E, para ser bonito, tem de ser diferente, porque arte está ligada à invenção.

Agora, às vezes querem criticar e dizem: "É, é bonito, mas não funciona bem". A gente sabe que é a mediocridade querendo se defender.

Hoje a gente não pode dizer que o Memorial [da América Latina] é ruim. Dizem: "A praça podia ter árvores".

É por sacanagem, porque sabem que na França, na Itália tem praças sem nada. O povo não se informa e se deixa levar pela ideia de que parece estacionamento. Se fosse assim, praças da Europa também poderiam ser estacionamento.

É o abrigo do homem. Serve para ele trabalhar, viver. A ideia é fazer algo bonito. Beleza sempre cercou o homem. Nosso ancestral mais antigo pintava as cavernas.

A leveza é encontrada em qualquer objeto, não é uma coisa que eu inventei. A ideia é simplificar, reduzir. Na arquitetura é isso também.

Liberdade criativa

O arquiteto não pode sair para a vida como desenhista. Ele deve saber como se comportar diante do mundo.

Em livros que li encontrei a frase que é justamente a que eu gostaria de ter escrito para explicar o meu trabalho. [Martin] Heidegger [filósofo alemão] diz que a razão é inimiga da imaginação.
Isso é o que quero dizer com arquitetura. Quero dizer que coisas que limitam o trabalho do arquiteto são ruins. Ele deve ter liberdade. Não é só a razão que funciona.

Processo criativo

Às vezes tudo é tão claro que leva logo à solução. O museu de Niterói surgiu espontaneamente por ser um promontoriozinho à beira do mar, e o projeto tinha de ter só um apoio central. Então, surgiu feito uma flor, um cálice.

O Memorial surgiu também de repente. Uma vez, lá na França, estava pensando na mesquita de Argel e fiz. Levantei de madrugada e desenhei

Projetos favoritos

A Universidade de Constantine [em Argel] tem coisas de que eu gosto mais. De Brasília, do Congresso, eu gosto. Gosto quando sinto que causou espanto, causou dúvida. Do Itamaraty todo mundo gosta. Eu prefiro a praça dos Três Poderes, a Catedral.

Arquitetura soviética

Estive na União Soviética no stalinismo. Quando ia sair da cidade [Moscou], a direção da escola de arquitetura me perguntou: "Que acha da arquitetura soviética?".

Eu disse: "Estou com vocês na política, mas, nesse ponto, não tenho argumentos para defender o que fazem".

Eles até disseram: "Bom, então faça suas críticas". Disse: "Não estou aqui para criticar, mas esta universidade, por exemplo, é muito ruim". Os espaços são pequenos. A circulação é deficiente.

Um deles falou: "Por que não apresenta as críticas ao arquiteto?". Disse: "Não. Respondo ao que perguntaram".

O arquiteto [da Universidade de Moscou] tinha me dado um quadro que fez, uma paisagem, também muito ruim.

Disse o que achei, porque na União Soviética eu tinha que responder com franqueza, não? Deviam querer isso em vez de elogios, não é?

Luiz Carlos Prestes

Eu o conheci quando acomodei no escritório uns 15 comunistas que tinham saído da prisão. Eu o conheci e, 15 dias depois, entreguei a minha casa para ele e disse: "Fique com a casa, que seu trabalho é mais importante". Às vezes, um cliente reacionário telefonava, e eu respondia: Partido Comunista Brasileiro. O sujeito tomava um susto.

Fidel Castro

Ele me convidou para fazer o projeto na praça da Revolução, mas era muito difícil chegar lá. Tinha que pegar o avião na Espanha e acabei não indo. E ele disse: "Ah! Vou mandar um navio buscar o Niemeyer".

Nós temos muita afinidade. Quando ele veio aqui a última vez, ele fez uma palestra. Quando ele desceu, o prédio, que não é de comunistas, estava todo aceso e todo mundo bateu palmas para ele.

Comunismo

Sou comunista, nunca achei que tivesse acabado. É uma ideia justa, estou velho demais para mudar de ideia.

O que ocorreu na União Soviética em 70 anos foi uma evolução fantástica. Transformaram um país de mujiques em potência mundial.

Eles foram à Lua, ajudaram todos os povos em libertação. Apoiaram todos os partidos políticos. Impediram que Cuba fosse invadida. Eles não se preocuparam economicamente, e a coisa falhou.

Crise do socialismo

O que eu penso é que o ser humano não estava preparado. Quando a gente fala em uma sociedade melhor, justa, em que todos se compreendem, tudo pede que o ser humano esteja disposto.

Cuba, por exemplo, está cercada, é o cerco mais horrível da história, e o povo está lá resistindo. É porque eles seguem o exemplo de Fidel.

Uma mudança para melhor vai acontecer quando o homem compreender que é fruto da natureza. Que é um bicho, que nasce e morre.

Quando eu faço um projeto, fico quebrando a cabeça e procuro lutar por ele, mas, no fundo, quando fico sozinho, sei que não tem importância.

Como essa conversa agora: aqui, um dia, não vai ter mais ninguém também. Penso que tanto faz ser feliz ou infeliz, a vida é um sopro, um minuto.

Oscar Niemeyer: Conversa de arquiteto

O texto "Conversa de arquiteto", de Oscar Niemeyer, foi publicado na seção "Tendências/Debates", da Folha, em 16 de julho de 2006, em que fala de soluções e preferências arquitetônicas. Leia a íntegra abaixo.




Um dia, Darcy Ribeiro me contou uma história engraçada. Tinha organizado uma mesa-redonda para debater os problemas dos índios brasileiros. Entre os convidados, havia um índio seu conhecido, e, durante uma hora, as questões foram discutidas sem que ele dissesse uma única palavra.

Surpreso, Darcy o interrogou: "Você não que falar?". "Não", foi a resposta. O nosso antropólogo insistiu: "Por quê?". "Estou com preguiça", respondeu o rapaz.

Todos riram, e eu fiquei a matutar: será que o índio não acreditava mais em certo tipo de promessa, naquelas boas intenções a que os nossos irmãos mais pobres já estão tão habituados?

Confesso que, tal qual o índio, tenho preguiça de participar de congressos, simpósios que surgem sobre arquitetura, de escutar as opiniões mais ridículas, os pontos de vista já superados, que, neles, impacientes, somos obrigados a ouvir.

Certa vez, Alvar Aalto, cansado de tais conversas, declarou que não existe arquitetura antiga e moderna. O que existe, no seu modo de ver, é boa e má arquitetura.

É evidente que Alvar Aalto tinha razão. Mas como eram limitadas, nos velhos tempos, as possibilidades de se caminhar na arquitetura!

É sempre bom exemplificar. Lembrar como era penoso para Michelangelo limitar o diâmetro de suas cúpulas a 30 ou 40 metros. É lógico que ele teria gostado de poder fazê-las com 80 metros de diâmetro, como tive a oportunidade de realizar agora no museu de Brasília.

E recordo outro exemplo de como os arquitetos daqueles tempos ficavam a sonhar soluções arquitetônicas que só agora é possível concretizar. Lembro Calendario, o arquiteto que projetou o Palácio dos Doges, em Veneza, desejoso de nele criar um espaço mais amplo e obrigado a recorrer a uma enorme treliça de madeira. Problema esse que, hoje, uma simples laje de concreto resolveria.

Não acredito numa arquitetura ideal, por todos adotada. Seria a repetição, a monotonia. Cada arquiteto deveria ter a sua arquitetura, não criticar os colegas, fazer o que lhe agrada, e não aquilo que outros gostariam que ele fizesse. E, ainda, ter a coragem de procurar a solução diferente, mesmo quando sentisse que era radical demais para ser aceita.

Reconheço, sem falsa modéstia, que não me faltou coragem para desenhar as cúpulas do Congresso Nacional, que espantaram até Le Corbusier, a nos afirmar: "Aqui há invenção". E, pelos mesmos motivos, agrada-me lembrar a praça do Havre, que projetei na França, eu a dizer ao seu prefeito diante do terreno escolhido: "Gostaria de rebaixar o piso desta praça quatro metros". Recordo que ele me olhou surpreso, mas eu falava com tanta convicção que a praça foi rebaixada como pedi.

É claro que eu tinha razão. Minha ideia era protegê-la dos ventos e do frio que vinham do mar.

Hoje, das calçadas que a contornam, o povo, de cima, a vê e, espantado, desce pelas rampas para apreciá-la melhor. Eu, pelo menos, não conheço nenhuma praça como aquela, agora tombada e escolhida um dia pelo crítico italiano Bruno Zevi como uma das dez melhores obras da arquitetura contemporânea.

Confesso que vacilei em falar desse trabalho meu com tanto entusiasmo. É um exemplo de determinação profissional que cabia aqui mencionar.

Se examinarmos a questão da intervenção da técnica na arquitetura, basta lembrarmos o seguinte: antigamente, as paredes é que sustentavam os prédios; com o aparecimento da estrutura independente, elas passaram a simples material de vedação.

E surgiram a leveza arquitetural, as fachadas livres e os grandes panos de vidro que caracterizam a arquitetura atual. E, quando, por razões urbanísticas --para encurtar distâncias--, os prédios começaram a ganhar altura, foi a descoberta do elevador que tudo tornou possível.

E apareceram os grandes arranha-céus, uma solução que espalha o caos por toda parte se não forem observados os afastamentos horizontais indispensáveis, como tão bem ocorreu na Défense, em Paris.

Não foi apenas o progresso da técnica construtiva que marcou a evolução da arquitetura mas também as transformações das ciências e da sociedade.

Na Universidade de Constantine, na Argélia, por exemplo, projetamos somente dois grandes edifícios: um de classes, e o outro, de ciências. O objetivo era atender a Darcy Ribeiro, evitar a construção de prédios separados (um para cada faculdade). Desses dois edifícios todos os alunos se serviriam, criando a troca de experiências que o meu amigo considerava indispensável.

E foi assim, atendendo ao progresso da técnica e da própria evolução social, que foi possível chegar a esta etapa do concreto armado, que abriu aos arquitetos um campo novo de possibilidades.

Sempre digo que podemos voltar ao passado por simples curiosidade, lembrar a primeira verga, o primeiro arco, as grandes catedrais, mas o vocabulário plástico do concreto armado é tão rico que com ele devemos trabalhar.

Infelizmente, a simplicidade com que se busca explicar a evolução da arquitetura não impede que, por ignorância ou falta de sensibilidade, os problemas continuem a ser discutidos da maneira mais medíocre. Uns a insistir na importância da ligação com o passado, outros a defender uma arquitetura mais simples, indiferentes à técnica do concreto armado que nos permite todas as fantasias.

É claro que ele abre aos arquitetos os caminhos mais diferentes, e o que adotamos é, em princípio, reduzir os apoios, tornando a arquitetura mais audaciosa e variada.

E, como a procura da surpresa arquitetural nos ocupa e a curva nos atrai, é nas próprias estruturas que intervimos.

Esse é o momento em que o arquiteto define a sua arquitetura --uns, como nós, voltados para a curva livre e inesperada, outros, com igual empenho, para a linha reta por eles preferida. Às vezes me perguntam qual é a razão da predominância da curva em minha arquitetura. E recordo logo André Malraux a dizer: "Guardo dentro de mim um museu de tudo que vi e amei na vida". E, como ele, é desse museu imaginário que muita coisa me ocorre com certeza, ao elaborar os meus projetos.

Na realidade, aprecio as coisas mais diferentes. Gosto de Le Corbusier como gosto de Mies van der Rohe. De Picasso como de Matisse. De Machado de Assis como de Eça de Queiroz.

Somente no campo da política sou radical, intransigente com o império assassino de Bush ou com os que, em nosso país, tentam combater o governo de Lula, que, diante dos problemas da América Latina, tão importantes para nós, tem sabido se manifestar.

Nestes momentos de pausa e reflexão é que me permito dizer que a vida é mais importante do que a arquitetura. Que, um dia, o mundo será mais justo e a vida a levará a uma etapa superior, não mais limitada aos governos e às classes dominantes, atendendo a todos, sem discriminação.

Releio este artigo e lembro Le Corbusier a escrever o poema sobre o ângulo reto, e eu a falar da curva que tanto me fascina:

"Não é o ângulo reto que me atrai Nem a linha reta, dura, inflexível, Criada pelo homem.

O que me atrai é a curva livre e sensual, A curva que encontro nas montanhas do meu país, No curso sinuoso dos seus rios, Nas ondas do mar, No corpo da mulher preferida.

De curvas é feito todo o universo, O universo curvo de Einstein."


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Um horror em Jussiape, Bahia

Caçador de pequenos animais, um comerciante decidiu se vingar dos rivais de um antigo prefeito ficha suja do interior da Bahia. Com revólver e espingarda em mãos, três cinturões e uma bolsa cheia de balas, ele transformou Jussiape num cenário de terror. Matou o prefeito reeleito, a primeira-dama e um servidor. Os dois últimos foram baleados no meio da rua.

Antes de ser morto por um PM, o caçador também feriu um mototaxista e dois policiais militares, um deles com um tiro na cabeça.

O ataque de Claudionor de Oliveira, 43 anos, conhecido como Coló, ocorreu na manhã de sábado. Até o fim da tarde de ontem, o policial atingido na cabeça permanecia internado em estado grave.

Segundo relato de conhecidos, Coló estava revoltado com a reviravolta política da cidade nos últimos anos. Ele era um ferrenho cabo eleitoral de Wagner Neves, cassado pela Câmara Municipal em julho de 2010. Barrado pela Lei da Ficha Limpa, Neves lançou a mulher, Vânia (PMDB), como candidata neste ano.

Vânia foi derrotada pelo atual prefeito, Procopio Alencar (PDT). Coló não aceitou o que considerou uma traição, já que que Procopio era o vice de Neves e assumiu com a cassação do titular.

Para o caçador, Procopio deveria ter apoiado Vânia nas eleições. A derrota dela nas urnas, dizem, foi a gota d'água para a vingança.

CAÇADA PELAS RUAS

O primeiro a morrer foi o gerente local da empresa de saneamento do governo da Bahia, Oderlange Pereira, 46. Ele levou um tiro na cabeça na entrada de um bar.

Armado, Coló seguiu caminhando em direção à casa do prefeito. No caminho, encontrou a primeira-dama Jandira Alencar, 71. Atirou uma vez. Caída e ainda com vida, ela recebeu um segundo tiro.

Procopio, o prefeito que também trabalhava como médico no município de 8.000 habitantes no pé da Chapada Diamantina, foi morto em seguida no seu consultório.

Aos gritos, moradores assustados corriam para suas casas e trancavam as portas.

"Eu ia de carro e dei de frente com ele. Pediu que descesse e falou: 'Já matei três'. Não sei como não me matou", afirmou Expedito da Silva, 39.

"Parecia [o cangaceiro] Lampião", completou Silva, amigo de infância de Coló.

Dono de um quiosque na cidade, Coló fez refém um mototaxista, subiu na garupa e pediu que o levasse na casa de dois irmãos apoiadores do prefeito, que, por sorte, não estavam em casa.

Os únicos PMs do município apareceram. Um foi ferido com um tiro na perna. O outro correu para pedir reforço, que viria após 30 minutos.

Coló foi morto no centro de Jussiape por policiais de cidades vizinhas. Antes, feriu na cabeça um desses PMs.

"Ele vivia dizendo que ia fazer uma tragédia na cidade", afirmou o guarda municipal Jacinto dos Santos.

O governador Jaques Wagner (PT) esteve ontem em Jussiape para o velório do prefeito e da primeira-dama. Até amanhã, Jussiape terá, emergencialmente, 25 homens da Polícia Militar. Depois, ficará com dez PMs fixos, anunciou ontem o governo do Estado.

domingo, 18 de novembro de 2012

Um homem do nosso tempo: Carlos Ayres Britto

Folha - Quando foi sua iniciação no campo da meditação?
Carlos Ayres Britto - De uns 20 anos para cá, tanto a meditação quanto o cardápio vegetariano. Eu tinha em torno de 50 anos, um pouco antes, até.

Como o sr. se converteu?
Eu recebi influências positivas, de, por exemplo, [Jiddu] Krishnamurti [1895-1986, guru indiano], Osho [Rajneesh, 1931-90, místico indiano], Eva Pierrakos [1915-79, médium austríaca], Eckhart Tolle [pseudônimo de Urich Leonard Tolle, escritor espiritualista nascido em 1948], autor do livro "O Poder do Agora", e a pessoa que mais me influenciou, Heráclito [de Éfeso, c. 540--c. 480 a.C., pré-socrático que elegeu o fogo e a permanente transformação como princípio da ordem universal].

Depois, de uns 12 anos para cá, comecei a me interessar por física quântica, e ela me pareceu uma confirmação de tudo o que os espiritualistas afirmam. A física quântica, sobretudo os escritos de Dannah Zohar [especializada em aconselhamento espiritual e profissional]. Venho lendo os livros dessa mulher, uma americana que escreveu uma trilogia maravilhosa: "O Ser Quântico", "A Sociedade Quântica" e "QS -- Inteligência Espiritual". Também passei a me interessar muito por neurociência.

O sr. tinha religião?
Católica, só que, de 20 anos para cá, me tornei um espiritualista.

Houve um momento de transformação?
Foi meio gradativo. Fui abolindo carne, depois abolindo frango, depois aboli peixe.

Há países que reconhecem em suas leis os direitos dos animais de forma mais abrangente. Podemos chegar a isso?
É possível que haja uma consciência maior. Pelo menos nas técnicas de abate, mais humanizadas, isso já se observa hoje em dia. Por exemplo, vocês sabem que os frangos são criados sobre um tratamento hormonal intenso e sem possibilidade de dormir? Uma luz acesa em cima dele para ele ficar acordado, o frango de granja? Isso é de uma violência...

O sr. condena a forma como o gado é abatido?
Condeno. Tudo. Vou dizer uma coisa, é uma observação minha, não falei em lugar nenhum. Sou contemplativo. Não confundir atenção com contemplação. Atenção é um foco, uma centralização do sentido tão intensa, que o mais das vezes resvala para a tensão. A tensão está muito próxima da atenção. Eu sou um contemplativo, porque na contemplação você concilia atenção e descontração. Isso é fato. Quando você é contemplativo, você contempla essa água, o copo antes de beber. O toque da sua mão no cristal. Eu estou acordado, como quem está atento. Mas estou descontraído, como quem está dormindo.

Então, contemplação é isso, é a conciliação entre a atenção e a distração. É impressionante. É um descarrego, um êxtase. Como vivo em estado contemplativo, eu observo coisas interessantíssimas. Uma dessas coisas é que nenhum pássaro carnívoro canta. Nunca vi ninguém dizer isso.

Os pássaros carnívoros, corujas, águias, falcões, ou crocitam ou piam, ou grasnam, nenhum canta, como se a natureza dissesse: só tem direito de cantar se for herbívoro. E todos os animais herbívoros, mesmo os mastodontes, elefantes, por exemplo, nenhum agride. Eles não são ativos nem pró-ativos na agressão, são reativos. No olhar de um herbívoro não tem chispa, não tem estresse. Todos os carnívoros são estressados no olhar, todos.

Assim se dá com o ser humano?
Assim se dá com o ser humano.

Por que houve tamanha tensão entre o relator Joaquim Barbosa e o revisor Ricardo Lewandowski?
[Se responder] eu vou dar uma de psicólogo, prefiro ficar na objetividade. Eu quero deixar claro: fui presidente, mantive a taxa de cordialidade.

O ego prevaleceu no julgamento?
Não subscrevo suas palavras, de que foi o ego que deu as cartas.

Não digo que pautou, mas que se manifestou em vários momentos.
Os ministros do Supremo são seres humanos, suscetíveis a influências, a percalços existenciais. Ora sabemos administrar esses percalços com o consciente emocional no ponto, ora ele baixa um pouco de patamar.

Mas não houve impasse, não houve pane. Tudo foi administrável. E não precisei, em nenhum momento, suspender a sessão para ver os ânimos refluírem. Quanto à questão de ego, ele prejudica a atuação não só de ministros do Supremo, mas de todo ser humano.

Quando Sartre disse que o inferno é o outro, ele quis dizer que o outro, com sua diversidade, a sua mundividência, seu peculiar modo de conceber e praticar a vida, afeta o nosso ego. Então, podemos traduzir as palavras dele como "o inferno é outro" ou como "o inferno é o ego". Tenho dito para mim mesmo que, sem o eclipse do ego, ninguém se ilumina.

Como o sr. definiria a atuação do Ministério Público e a do relator Joaquim Barbosa no julgamento?
Acho que a história vai registrar que [Roberto] Gurgel e Joaquim Barbosa foram médicos-legistas na autópsia dos fatos delituosos. Eles tiveram merecimento extraordinário para reconstituir com fidedignidade os fatos em sua materialidade. E o "link" entre esses fatos e respectivos autores e partícipes.

Eu só vejo por esse prisma técnico. Joaquim Barbosa, transido de dor [nas costas], um homem "baleado", em linguagem coloquial, a tantos meses, conseguiu levar a termo um processo com quase 600 mil páginas, 600 testemunhas, 40 réus no ponto de partida, sete crimes teoricamente graves e imbricados no mais das vezes.

O sr. chegou a pensar em suspender as sessões?
Pensei, houve um momento em que pensei.

Chegamos a ter ofensas pessoais.
Mas no limite palatável.

Mas nunca houve um julgamento com clima tão tenso, às vezes com atritos tão fortes.
É que esse julgamento é peculiaríssimo. Quando dizem que o Supremo está tomando decisões novas, eu digo que os fatos é que são novos, o imbricamento é que novo, o gigantismo da causa é que é novo, é inédito. O Supremo Tribunal Federal está produzindo decisões afeiçoadas ao ineditismo da causa.

Advogados reclamam da introdução de novos conceitos como a teoria do domínio do fato [segundo a qual autor de um crime não é só quem o executa, mas também quem detém o poder de decidir e planejar a sua realização].
Assim como o dançarino, que se disponibiliza de corpo e alma para a dança --chega o momento em que se funde com ela, e você já não sabe quem é o dançarino e quem é a dança, é uma coisa só--, o intérprete do dispositivo jurídico pode, também, numa relação de profunda identidade e empatia, se fundir com esse dispositivo. Aí você compõe uma unidade. Você é um com o dispositivo, e o dispositivo é um com você.

E isso não é invencionice, decola de um juízo de Einstein, que em 1905, físico quântico que era, cunhou uma expressão célebre: "efeito do observador". Ele percebeu que o observador desencadeava reações no objeto observado.

Ele disse que o sujeito cognoscente, em alguma medida, faz o objeto cognoscível, a depender do grau da intensidade interacional entre eles. Claro que quando você joga teoria quântica para a teoria jurídica, se expõe a uma crítica mordaz. O sujeito diz: "Mas isso não é ciência jurídica".

O julgamento também é inédito pelo desfecho, com políticos condenados à prisão em regime fechado?
Sabe por que está sendo inédito? Porque vocês esquecem, a sociedade esquece, [mas] nós, ministros, não esquecemos. Isso vem num crescendo, só que agora é no campo penal. No campo científico, liberamos o uso das células tronco embrionárias. No dos costumes, decidimos em prol da homoafetividade, da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, no ético cortamos na própria carne proibindo o nepotismo no Judiciário.

No campo político, afirmamos a Lei da Ficha Limpa. Isso é um crescendo, o Supremo vem tomando decisões que infletem sobre a cultura do povo brasileiro. E agora chegou o campo penal.

O Brasil muda?
Não se pode dizer que muda, sinaliza mudanças. Há um vislumbre de mudanças. Ninguém pode garantir nada. Agora, há uma sinalização. Mas a decisão não tem nada a ver com reverência à opinião pública, com submissão à opinião pública, com uma postura de cortejamento à opinião pública.

Os políticos terão mais cuidado, com o risco de irem para a prisão?
Se respondesse sim, estaria fazendo um corte abrupto, radical, de que essa decisão é, sim, um divisor de águas. Não quero ser categórico. Eu digo que essa decisão do Supremo vem num crescendo, que agora alcança o plano criminal. Sinaliza uma nova época, de mais qualidade na vida política.

Eu não posso dizer que a impunidade está com os dias contados, eu estaria dourando a pílula, sendo ufanista, não posso dizer isso. Agora, eu diria que a impunidade sofreu um duro revés, um tranco, por efeito dessa decisão.

Este é o julgamento de um partido?
Na minha opinião, não tem nada a ver com julgamento de um partido. Não é o julgamento do PT, são réus, que alguns ocuparam cargos de direção no PT.

O sr. foi um dos fundadores do PT?
Sabe que não fui? Fazia conferências em aulas e congressos, em seminários, e advogava para coletividades. Só entrei mesmo no PT acho que em 1988, não fui fundador. Passei lá quase 18 anos.

O sr. costuma dizer que é página virada, mas, olhando no que o PT se transformou ao chegar ao poder, isso de certa forma o entristece?
É interessante. A resposta não seria "me entristece". Vou dizer por quê. Eu vejo a vida por um prisma muito do dinamismo, heracliticamente, meu filósofo preferido.

Veja o que aconteceu: qual dos dois partidos que encarnaram a resistência ao regime de exceção [1964-85]? São, hoje, o PSDB e o PT. Esses dois, que encarnaram a resistência, foram premiados, chegaram ao poder. O primeiro, por intermédio de Fernando Henrique. O que aconteceu com esse partido, que teve origem no MDB, no PMDB? Foi perdendo um pouquinho do elã, do entusiasmo na sua militância de esquerda.

Aí, a sociedade disse: está na hora do outro. Qual foi o outro que encarnou a resistência? O PT. Então, vejo por um prisma do exaurimento de fases. A fase ideológica do PSDB se exauriu, a do PT também se exauriu. Não de todo, não podemos ser injustos, porque o PT continua com quadros muito bons. Um desses quadros chegou a escrever um artigo a favor do Supremo, o Tarso Genro [governador do RS]. Vejo isso como parte de um processo histórico previsível.

Os dois partidos se contaminaram?
Não vejo por esse prisma negativista. Eles perderam o que os gregos chamam de "Deus dentro da gente", entusiasmo. Aquele ímpeto depurador das instituições, aquela ânsia de voltar à democracia. Com o retorno à democracia, você chega à conclusão: foi mais fácil alcançar o objetivo do que preservá-lo. Às vezes você conquista uma mulher dos seus sonhos e não sabe manter o amor dela. Isso é um processo histórico.

Alguns ministros me disseram, reservadamente, terem recebido reclamações, cobranças, de que, indicados pelo ex-presidente Lula, acabaram traindo-o. O sr. acha que traiu Lula, que o indicou?
Em nenhum momento me senti assim. Ninguém nunca me cobrou, menos ainda o presidente Lula, ele nunca se acercou de mim, se aproximou de mim para cobrar, fazer queixa. Até porque, vamos convir, cargo de ministro não é cargo de confiança. Não é.

Você não pode ser grato a quem nomeia com a toga. O modo de você, pelo contrário, de honrar a indicação é sendo independente, é transformar os pré-requisitos de investidura no cargo em requisitos de desempenho no cargo. Fui nomeado a partir de dois pré-requisitos, reputação ilibada e notável saber jurídico. Eu transformei isso, como me cabia, em requisitos de desempenho. Então, eu honrei minha nomeação.

Dos dez ministros no julgamento, sete foram nomeados por Lula ou por Dilma. Essa independência conta a favor deles? Os presidentes petistas erraram nas nomeações?
Isso honra os nomeantes. A nossa postura técnica, independente, isenta, desassombrada, é uma postura que honra os nomeantes. Não só os nomeados.

Apesar de membros do PT afirmarem que o julgamento foi político?
Sim, a despeito disso. Isso faz parte da liberdade de expressão. Esse tipo de queixa eu recebo como pura liberdade de expressão, aceito sem maiores queixas.

Como foram os três meses de julgamento? Sua rotina mudou?
Não mudou em nada. Continuei meditando todos os dias, tocando violão quase todos os dias. Eu apenas diminuí muito, o que foi ruim para mim, minhas saídas de casa para me deleitar com espetáculos públicos, teatro, música.

O vegetarianismo é um passo para a iluminação?
Não chegaria a isso, não. Agora, tudo tem uma lógica elementar. É claro que não vou explicar tudo pela lógica, porque o mundo do mistério existe e o mistério está fora da lógica convencional. Quando você olha para você e diz: "Não há ninguém dentro de mim, o meu corpo não está abrigando ninguém", quando você diz "eu sou um vazio", você enxota o ego.

Mas não há vácuo na natureza. O que acontece? O vácuo vai ser preenchido pelo universo, pelo Cosmos, pela existência, outros preferem dizer por Deus. Expulse de si o ego que o espaço deixado por ele vai ser instantaneamente ocupado pela existência. Aí você dialoga com a existência, isso é elementar. Aí você tem um vislumbre do eterno, do definitivo, mais clarividente, você abre os poros da lógica, do seu cartesianismo, você vê o direito por um prisma novo.

Agora, você paga um preço por isso. Qual é? Quando vê as coisas por um prisma totalmente novo, a sociedade não tem parâmetro para avaliar seu prisma diante do inédito para ela. Você é um antecipado, viu antes dela. O que ela faz, lhe desanca, lhe derruba, se não ela vai se sentir menor, inferiorizada, aturdida. O que ela faz, ela lhe desanca, você está errado, ou então você não é um cientista, você é um mistificador.

A sociedade não tem parâmetro para analisar os antecipados no tempo. Veja a lógica das coisas, o tempo só pode se guiar por quem anda adiante dele. São os espiritualistas, os artistas, porque eles não têm preconceitos, pré-interpretações, pré-compreensões.

Como definiria os sete meses no comando do Supremo?
Uma honra muito grande, pela oportunidade de, a partir do Supremo, servir à sociedade brasileira. Só faz sentido exaltar a figura da presidência nessa perspectiva, do serviço da coletividade. Fora disso, não é viagem de alma, é viagem de ego.

E como resumiria os nove anos que passou no Supremo?
Diria o seguinte: Em tudo o que faço, já não faço questão de ser reconhecido. O que faço questão é de me reconhecer. Fui eu mesmo nessas questões. Não perdi minha essência, minha mundividência.

Eu gravitei em torno dos valores que dão sentido, dão grandeza, dão propósito à existência individual e coletiva. Eu não perdi a viagem. A frase é essa.

O mensalão é o mais grave escândalo de corrupção do país, como disse o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, analisando numa perspectiva histórica?
Nunca fiz essa comparação, se esse é o mais grave ou não. Sabe por quê? Na medida que você diz, esse é o mais grave, você já resvalou para o campo da subjetividade, e eu me defendo da minha própria subjetividade, faço o possível para mim, porque as leis têm esse papel, livrar o juiz de si mesmo.

O sr. disse que PSDB e PT perderam o entusiasmo. Perder o entusiasmo significaria, neste caso, montar um esquema como o do mensalão?
Não estou dizendo isso. Eu digo que os crimes eram graves, todos, mas a corrupção passiva, em mim, despertava uma reflexão até mais aprofundada no sentido de endurecimento das penas, pelo menos para início de discussão.

Por quê? Porque, se não bastasse nossa tradição ruim de eleitores de cabrestos, agora temos uma era de eleitos de cabrestos. Porque o eleito propinado se torna de cabresto.

E, nos meus votos, deixei claro, tentei mostrar que não era o Supremo que estava mudando de opinião, é que o caso é diferente, o caso é singularíssimo, a exigir do Supremo ineditismo conceitual, mas na exata medida da singularidade dos fatos. Fatos novos singulares pedem visualizações jurídicas novas também.

O resultado do julgamento significa um revés também para a política?
A despeito do que disse, a utopia não pode se dissociar da política jamais. Porque, se não, você está dando um ducha fria na atividade política, e não se pode fazer isso. A atividade política é a mais importante atividade social.

Nesses nove anos de STF, o sr. já ficou emocionado com alguma causa a ponto de chorar?
Muitas, muitas. Quando presidi aquela primeira audiência pública da história do Supremo, do Judiciário, sobre células-tronco embrionárias, subiu Mayana Zatz, aquela geneticista brilhante, autoridade mundial, e deu um depoimento sobre uma criança paraplégica, ou tetraplégica.

Ela disse que tratava essa criança de uns 7 ou 8 anos em vão. Usava todos os recursos da medicina convencional em vão. Um dia a menina mandou chamá-la e ela foi ao hospital. Eu desabei. Eu já desabei várias vezes, mas essa foi a mais forte.

A menina disse: "Doutora, eu mandei lhe chamar pelo seguinte. Por que a senhora não abre um buraco nas minhas costas e põe dentro desse buraco uma pilha, uma bateria, para que eu possa andar como minhas bonecas?".

Quando essa mulher disse isso, respondi para mim mesmo: Essa menina de sete anos acaba de fazer meu voto. Como é que eu posso ser contra? Como? Esse foi um dos momentos mais fortes.

O sr. acha que o Supremo deveria liberar o aborto para outros casos, além do de feto anencéfalo?
É como a droga. Eu tenho abertura para a tese da descriminalização das drogas, mas não tenho opinião formada. Tenho simpatia, tendência, mas não tenho ponto de vista formado.

A mesma coisa do aborto, mas não tenho ponto de vista formado. Para mim, o grande problema é o traficante, é o tráfico. Isso é a causa de uma criminalidade mais do que sistemática, contínua ou metódica, é sistêmica. Disseminada e capilarizada.

O sr. avalia que o Estado está perdendo essa guerra contra o tráfico?
Não, não está perdendo. Eu ainda acredito no poder preventivo e repressivo do Estado nessa matéria. E o melhor é a discussão. Da discussão nasce a luz.

Olha aí, mais um exemplo, quando dissemos que é legítima a passeata, o ato público, a reunião em praça pública para discutir a descriminalização da maconha. Aliás, o uso puro e simples já está descriminalizado.

Não ainda. A pena é mais leve. Só que gera distorção.
Isso! O rico, quando é pego com maconha, é reputado como usuário. E o pobre, quando é preso com maconha, é tido como traficante, como pequeno traficante.

Por que isso, ministro?
Pois é. Nossa cultura elitista. Então veja como o Supremo avançou a dizer que todo tema pode ser manifestado. Nenhuma lei, nem mesmo a Constituição, pode blindar a si mesma de qualquer discussão.

O que vai ser a vida do presidente do Supremo pós-Supremo?
Olha, vai ser entusiasmada como tem sido aqui. Entusiasmo é Deus dentro da gente. Os gregos dizem isso. Eu ponho alegria e amor no que faço.

Algum desejo de entrar na carreira política, disputar eleição?
Não. Nenhuma. Aprendi na vida o seguinte: chega uma época em que você, em tudo o que você faz, já não precisa ser reconhecido, precisa se reconhecer. É o caso. Eu me reconheço no que faço.

Aí você diz, mas por que você se reconhece? Aí eu digo: porque, sem nenhum esforço, não me vejo criando abismo, vácuo, distância entre o que eu prego e o que eu faço. Não me vejo, de jeito nenhum.

Fonte: Folha de SP
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1186307-ayres-britto-se-aposenta-e-colhe-os-louros-do-julgamento-do-mensalao.shtml

Corrupção legalizada


O STF já condenou vários políticos, dirigentes partidários e empresários por estarem envolvidos em desvio de recursos públicos, corrompendo políticos para que votem a favor de determinados interesses.

Todos os juízes, em suas argumentações, foram unânimes em condenar esse desvio, a corrupção e a compra de votos de parlamentares, atos altamente lesivos à sociedade brasileira. O desvio de dinheiro público retira recursos da saúde, da educação, dos serviços e investimentos públicos, tão necessários para a população, especialmente para os mais necessitados.

A compra de votos de parlamentares para que votem a favor dos interesses dos corruptores desvirtua e desmoraliza a democracia, abala a confiança e afasta gente de bem da política. Como o comportamento dos políticos, que deveriam ser os guardiões das leis e da ética, serve de referência para muita gente, a corrupção e o descrédito na política contaminam a sociedade.

Infelizmente, atos disfarçados de corrupção, desvio de dinheiro público e compra de votos são amplamente praticados no Brasil com respaldo das leis e das legislações.

O financiamento das campanhas é feito majoritariamente por empresas. Nas eleições de 2010, empresas doaram R$ 2,3 bilhões e foram responsáveis por 70% dos recursos para as campanhas dos deputados federais, 88% dos recursos dos senadores, 90% para os candidatos a governadores e 91% para os candidatos a presidente. Só 1% das empresas doadoras (479) fizeram 41% das doações e 10% das empresas foram responsáveis por 77% das doações.

A quase totalidade dessas empresas tem negócios com governos e dependem muito dos políticos para realizar suas atividades. O que quase todas estas empresas esperam dos eleitos? Contratos e legislações em seus benefícios.

Colocam dinheiro nas mãos dos políticos para que estes favoreçam seus negócios. É ou não é uma forma, absolutamente "legal", de corromper comprando votos (no caso de parlamentares) e decisões (no Executivo) para colocar dinheiro público a serviço de interesse privado?

Outra forma largamente usada para corromper e comprar votos com uso de dinheiro público é a prática dos parlamentares apresentarem emendas ao orçamento, buscando canalizar recursos públicos para projetos do seu interesse.

Um estudo da Confederação Nacional de Municípios, que prega o fim das emendas parlamentares e a distribuição destes recursos de forma equitativa, mostra que de 2003 a 2007 foram aprovados pelo Congresso R$ 65 bilhões de emendas e foram desembolsados apenas R$ 25 bilhões. O desembolso fica a critério exclusivo do Poder Executivo.

Todos temos notícias da liberação dos recursos de emendas na véspera de importantes votações para que parlamentares votem com o governo. É ou não é uma forma de corromper parlamentares e o uso do dinheiro público para comprar votos?

Está na hora da sociedade e de todos aqueles que, com razão, se indignam com a corrupção, com a compra de votos de parlamentares e com o desvio de dinheiro público se mobilizarem para acabar não só com a ilegalidade, mas também com a "legalidade" dessas práticas.


ODED GRAJEW, 68, empresário, é coordenador-geral da secretaria executiva da Rede Nossa São Paulo e presidente emérito do Instituto Ethos
Fonte: Folha de SP

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Já somos uma re(s)pública?

O feriadão desta vez foi gordo, gordíssimo. E hoje, na ponta inicial do feriadão, o que é mesmo que se comemora? A proclamação da República, ou seja, nossa passagem de império a república. Sei que para muita gente o sonho dourado ainda é uma ditadura, qualquer que seja (com um imperador ou rei, um general, um Médici, um Castro, ou qualquer dessas coisas), pusilânime como qualquer, qualquer ditadura (de direita, de esquerda, de centro --ou de nada, como, aliás, as ditaduras soem ser), em que os delírios do ditador de turno são a lei.

Pois bem. Malgrado a vontade de muita gente, o Brasil, ao menos no nome e no papel, é uma república. O ideal mesmo seria termos, literalmente, uma república, ou seja, uma "res publica", expressão latina que dá origem à palavra "república" e que significa "coisa pública". A república é república justamente porque nela o que está acima de tudo não é a vontade, a opinião ou o credo do ditador de plantão, mas o interesse público. Por acaso não é esse o cerne do que julga o Supremo neste momento? O famigerado mensalão não foi a apropriação de dinheiro público para fins partidários, pessoais etc., etc., etc.?

O caro leitor já ouviu, por exemplo, alguém elogiar a "postura republicana" de determinada autoridade (o/a presidente da República, por exemplo) na condução de determinada questão? O que significa esse elogio? O que se elogia é a atitude da autoridade que põe em primeiro plano o interesse público, e não o pessoal ou partidário, por exemplo.

Há oito anos, escrevi sobre o tema "res publica" neste espaço. Tomando por base o significado literal de "república", abordei alguns fatos da época e concluí que ainda estávamos longe do que realmente é uma república. E hoje? A situação mudou? A nação brasileira já sabe diferenciar o público do privado e sobrepõe aquele a este? Nosso espírito já é definitivamente republicano?

Não vou entrar nessa discussão, não, caro leitor. Pense e conclua. Eu só queria levantar a lebre a partir do que é precípuo na minha função (comentar e analisar fatos da língua). Permito-me lembrar-lhe o que dizia o grande educador Paulo Freire: "A leitura do mundo precede a da palavra". No caso específico do que estamos abordando, eu diria que é possível fazer os dois percursos, e isso certamente fica mais claro e mais funcional quando se sabe "ler", por exemplo, uma palavra como "república", que, em seus empregos formais, ainda significa o que nos ensina a etimologia (parte dos estudos linguísticos que se ocupa da origem e da evolução das palavras).

É preciso tomar cuidado com os falsos encantos da etimologia. Há muito chute por aí. Obras sérias (como o "Houaiss", por exemplo) são claras quando é clara a origem da palavra; quando não é, nada de tiro para qualquer lado ("origem obscura" é o que se diz quando não há documentação suficiente).

O desmonte cirúrgico da palavra e a associação de seus elementos mórficos com os de outras palavras podem aumentar a intensidade da absorção do que se lê. Se tudo isso for precedido pela leitura do mundo e associado a ela, pode-se começar a pensar na concretização da função (ou das funções) da leitura, do estudo, do aprendizado. O caso de república é só um exemplo, um ótimo exemplo, não lhe parece?

Depois disso, não se torna mais interessante saber por que o Brasil é uma república? E por que nosso país se chama República Federativa do Brasil? Epa! O que é "federativa", que é da família de "federação", "confederação" etc.? Agora é sua vez. Vá em frente. É isso.


Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".
Fonte: Folha de SP

Re(s)pública ou privada?

Na próxima segunda-feira, comemora-se (?) a Proclamação da República, que, como se sabe, ocorreu em 15 de novembro de 1889. Faz, pois, 115 anos que, a valerem as lições da etimologia, vivemos de fato sob o sistema republicano de governo.

E o que dizem "as lições da etimologia"? Antes, talvez seja bom lembrar que a etimologia estuda a origem e a evolução histórica de uma palavra. Ela nos ensina, por exemplo, que "república" vem da expressão latina "res publica", cujo significado é "coisa pública".

O elemento latino "res" ("coisa", "bem", "propriedade", "assunto", "negócio") se encontra, por exemplo, em "reificar", verbo empregado em filosofia como sinônimo de "coisificar" ("encarar algo abstrato como uma coisa material ou concreta"; "transformar em coisa", de acordo com o dicionário "Houaiss").

Pois bem, caro leitor, sabe qual é a primeira acepção de "república" no "Aurélio"? Anote aí: "Organização política de um Estado com vista a servir à coisa pública, ao interesse comum".
E agora? Como ficam "as lições da etimologia"? Bem, se lembrarmos, por exemplo (só um, entre os milhares possíveis no Brasil de hoje, de ontem, de antes de ontem), que o presidente da República assinou uma medida provisória para dar status de ministro de Estado ao presidente do Banco Central a fim de poupá-lo de certas investigações relativas a sua vida privada, veremos que...

Veremos que não é à toa que volta e meia se encontram cones no leito carroçável diante de padarias, restaurantes, escolas, hotéis, salões de beleza etc., etc., etc. Postos por jagunços contratados pelos prepotentes donos dos estabelecimentos comerciais, esses cones têm a função de transformar em privado o que é público.

O que uma coisa (os cones) tem que ver com a outra (a medida provisória de Lula)? E o que as duas têm que ver com uma coluna que, teoricamente, se ocupa da língua, do idioma? Tudo, absoluta e rigorosamente tudo. À primeira pergunta se responde facilmente: se é verdade que "o exemplo vem de cima", não se pode esperar que, num Estado (que aqui tem o sentido de "nação politicamente organizada") em que os poderes constituídos transformam em privado o que é público, o grosso da sociedade aja diferentemente dos seus governantes.

À segunda pergunta (sobre a relação que tudo isso tem com uma coluna que se ocupa da língua) se responde com o que pregam os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), instituídos pelo Ministério da Educação. Em palavras pobres, esses parâmetros determinam que o ensino seja vinculado à realidade e que haja "diálogo" entre as disciplinas.

Um professor de história, por exemplo, não pode falar da passagem do Império para a República sem falar do que significam as palavras "império" e "república". Quando analisa um texto, um professor de português não pode ignorar os fatos políticos, históricos e sociais nele presentes.

Não sei o que você pretende fazer no feriadão, caro leitor. Seja lá o que for, lembre-se de que a folga (a que nem todos terão direito) advém da comemoração do fato de um dia termos deixado de ser um império para passarmos a uma oligarquia, epa! (ato falho), a uma república (ou republiqueta, não sei). O que é "oligarquia"? Recorramos (de novo) à etimologia: "oligo-" significa "pouco", "em pequeno número"; "-arquia" é "poder", "autoridade". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
Fonte: Folha de SP

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Oposição a prefeitos se saiu melhor nas urnas

Candidatos de oposição aos atuais prefeitos foram eleitos em 50 das 85 cidades mais importantes do país nas eleições deste ano.

O número representa um aumento de 56% em relação ao desempenho das oposições municipais na campanha anterior, em 2008.

Naquele ano, o panorama foi o inverso: os situacionistas ganharam em 53 cidades, e os oposicionistas, em 32.

Esse conjunto de prefeituras inclui as capitais e os municípios com mais de 200 mil eleitores.

Um dos fatores que ajudaram os governistas quatro anos atrás foi o alto número de tentativas de reeleição.

À época, 41 prefeitos desses municípios foram reeleitos --outros sete tentaram.

Agora, houve apenas 22 reeleições, e o número de prefeitos derrotados nas urnas dobrou: passou para 16.

Para Ricardo Ismael, cientista político da PUC-RJ, houve, em 2012, mais competitividade nas eleições com uma maior participação de partidos menores, o que dificultou a situação para aqueles que tentavam a reeleição.

"A ausência de adversários favorece quem está na administração", afirma Ismael.

Ele cita o exemplo de Eduardo Paes (PMDB), reeleito em primeiro turno no Rio com 20 partidos na coligação.

A tendência, segundo Ismael, é que os partidos grandes tenham de negociar mais.

Nas 26 capitais estaduais, os índices são ainda mais chamativos: foram seis vitórias oposicionistas em 2008 e 20 nas eleições deste ano.

O fenômeno não tem relação direta com o posicionamento desses candidatos com o governo Dilma Rousseff.

Há petistas e tucanos tanto entre perdedores como entre os vencedores. Pelo país, grupos políticos instalados há décadas no poder local sofreram reveses neste mês.

Em Curitiba, por exemplo, o prefeito Luciano Ducci (PSB) não chegou nem ao segundo turno. A cidade elegeu Gustavo Fruet (PDT), encerrando um domínio de 24 anos de uma corrente que incluiu prefeitos de PMDB, o antigo PFL (hoje DEM) e PSDB.

Em Campo Grande (MS), o PMDB vai deixar a prefeitura após 20 anos. Em Diadema (SP), o PT tentou reeleger o atual prefeito, mas perdeu para o PV. Petistas comandaram a prefeitura por 30 anos, com exceção de 1996 a 1999.

ESTAGNAÇÃO

Uma outra explicação para o fenômeno pode estar na economia, com a redução de poder de investimento dos prefeitos: a eleição de 2008 ocorreu quando surgiam os primeiros sinais da crise financeira fora do Brasil.

De 2005 a 2008, período de duração do mandato anterior aos dos atuais prefeitos, o país cresceu em média 4,6%.

Nos últimos tempos, o crescimento desacelerou. A média destes quatro anos deve ficar abaixo dos 3% ao ano.

O professor José Paulo Martins, do departamento de Ciências Políticas da UniRio, atribui os números à dificuldade de renovação que os grandes partidos enfrentam.

"Isso pode explicar o bom desempenho do PSB e, em menor escala, do PSOL."

O PSB venceu em 11 das 85 cidades, sendo em nove delas como oposição. A direção da sigla diz que decidiu "ousar" e lançar candidatos próprios em cidades onde apoiava outras legendas.

A estratégia deu certo em duas das maiores metrópoles do país: Fortaleza e Recife, onde rompeu com o PT e vai assumir as prefeituras.

"Ninguém está como dono, com uma vitória esmagadora. É importante porque garantiu o pluralismo", afirma Carlos Siqueira, primeiro-secretário nacional do PSB.

Para o secretário-geral do PSDB, Rodrigo de Castro, a renovação também explica os resultados deste ano.

Ele diz que o "recado" das urnas é que "aquela história de que era muito fácil se reeleger não existe mais". "Onde a gente ia a população pedia caras novas."

No grupo dessas capitais e de maiores municípios moram o equivalente a 37% dos eleitores do país.

Fonte: Folha de SP

domingo, 28 de outubro de 2012

O Novo, o moço e a renovação

Por Carlos Melo*

Fernando Haddad venceu; Lula é mesmo um forte. Derrotado fosse, o ex-presidente amargaria hoje seu maior fracasso: associada ao Mensalão, a derrota seria interpretada como seu fim. Justos, então, os créditos: Lula acreditou, ousou, correu riscos. Mas, isto não facilita para novo prefeito: Haddad terá que provar que também é um forte. Se ampla estrada se abriu, longo será o caminho. E sua missão será percorre-lo escrevendo uma nova história.

Ninguém sabe os desdobramentos do mensalão: o quanto pode transbordar para outros atores, incendiar novos rancores. Trata-se de um capítulo que deixou feridas e demarca um tipo de política que precisa ser superada. Não apenas retoricamente, como nas campanhas eleitorais, mas na prática, nos métodos e valores. Não se restringe isto ao PT e nem à Ação 470. O Julgamento, de algum modo, tratou de hábitos e costumes do sistema político.

É justo que o PT sinta-se hoje com alma lavada. Foi realmente seu maior suplício: a coincidência do julgamento com a eleição mexeu com muitos demônios. Mas, será um erro não exorcizá-los. Saber ganhar é mais importante que saber perder. Para Haddad será importante compreender que a vitória não absolve condenados, nem apaga a história. Mas, pode, no entanto, mais rapidamente virar a página. Permitir que se escreva com novas tintas, num novo alfabeto.

Separando as coisas, o eleitor deu chance e lição: no seu cálculo, as políticas públicas, o novo rosto e a perspectiva de novos métodos atuaram mais decisivamente do que o ressentimento. Foi uma escolha pela superação.

A oposição continuará criticando os mais pobres por defenderem seus legítimos interesses antes de se preocupar com o bolor de um sistema político que, entendem, não os representa? Seria improdutivo, mais uma vez. Precisa, então, compreender o recado: não se perdoou o Mensalão; mas não se aceitou o farisaísmo, como se o sistema político fosse bom e ruins fossem apenas esses mensaleiros. E os outros? A Justiça ainda dirá.

Melhor será compreender e discutir a política em outro nível. O estilo “nós não temos nada contra o Suplicy, só não queremos o PT mandando aqui” (Maluf, 1992), ressuscitado por Serra, é velho e cansou. Não tem a mesma força de um tempo em que o PT ainda não fora suficientemente testado, um PT sem políticas públicas a mostrar.

José Serra tinha muito a dizer, mas apostar nisso foi seu maior erro. E não foi um erro novo. Em 2006, Alckmin já o cometera e, em 2010, Serra também. A política é feita para superar impasses, olhar para o futuro, trazer o progresso. Não para enfiar o dedo nas feridas dos estropiados. Condenados pagam por seus crimes; a Justiça decide. Não se tripudia suas desgraças, nem se sapateia sobre seus caixões. Crueldade dá pouco voto.

Assim, como Dilma, em 2010, Haddad foi um estreante de desempenho excepcional, nas ruas, na TV, nos debates. Quem torcia para que o calouro se encolhesse diante do veterano, se decepcionou. Sabendo o tamanho do desgaste do PT, o candidato não se intimidou: foi em frente, insistiu teimosamente na necessidade de virar páginas; não “respondeu na mesma moeda”, não aloprou. Empunhou um programa de governo, apontou críticas impessoais. Trouxe inovações, a começar pelo Bilhete Único Mensal, um inegável aggiornamento da cidade com o mundo.

Candidato, Haddad surfou a onda do “novo”. Prefeito, não poderá fazê-lo servindo-se apenas do novo na idade, o moço. Dele se espera o novo de verdade, na reformulação de quadros e costumes. O novo, de fato. Voz ativa num PT que precisa de depuração; na política nacional que exige novos ares. Que não seja outro Collor, outro Pitta, pois comparado será. Que componha sem arrogância, mas não se deixe conduzir pelo atraso. Que conduza renovações múltiplas: na urbe, na política, nos valores. Não será fácil. Mas, “Non Ducor Duco” é o lema da Cidade que o escolheu.

* Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper

Fonte: Estadão

sábado, 27 de outubro de 2012

A favor da polarização


O Brasil tem 30 partidos, dos quais 24 com representação no Congresso. Todos levam dinheiro público e a maior parte conta com tempo de TV e outras regalias. Nenhum país sério deveria manter tal sistema político.

Virou clichê nas eleições atuais criticar a polarização PSDB-PT. Ela seria responsável pelo aumento da abstenção e dos votos nulos e brancos no pleito paulistano, reflexo do desinteresse da população.

Pois que viva a polarização. Se fosse de verdade, o bipartidarismo significaria a maturidade da política local.

Não o bipartidarismo imposto pela ditadura militar a partir de 1966, quando as siglas extintas deram lugar ao MDB e à Arena --dizia-se à época que o primeiro, oposicionista sem dentes, era o partido do "sim" e o segundo, situacionista sem escrúpulos, o do "sim, senhor".

Mas o bipartidarismo que é fruto de anos de democracia consolidada, como existe nos EUA. Ali, desde pelo menos o Congresso de 1877, a política é dominada pelos partidos Democrata e Republicano.

Não são os únicos. Há vários nanicos, quatro deles com candidatos à Presidência na corrida atual: Verde, Libertário, da Constituição e da Justiça. Porém não são levados a sério por não terem chance. E não têm chance porque o sistema político não permite que tenham.

Com isso, os políticos de centro-esquerda e de esquerda se concentram sob o guarda-chuva dos democratas; os de centro-direita e de direita, sob o dos republicanos. Há centristas em ambas as agremiações. Elas formam duas massas mais ou menos coesas, que costumam votar segundo seu próprio rol de princípios e interesses.

O mesmo deveria ocorrer aqui. Gilberto Kassab e seu recém-criado PSD deveriam estar no partido tucano; Eduardo Campos e seu PSB, com os petistas. O DEM seria a ala mais à direita do PSDB; o PSOL, a mais à esquerda do PT. O PMDB evaporaria, mezzo calabresa, mezzo mozarela. E assim por diante.

Diminuiriam as maracutaias e os acordos pouco republicanos, acabariam as vendas de tempo na TV, as prévias passariam a existir de verdade, os debates ganhariam relevância e ritmo. Por que não acontece? Primeiro, pela legislação brasileira, que carece de reforma.

Depois, porque os caciques dos dois partidos majoritários sufocam jovens lideranças. O PT está renovando seus quadros em São Paulo com Fernando Haddad e Alexandre Padilha, mas à custa do dedaço de Lula. O PSDB vive há anos o psicodrama José Serra-Geraldo Alckmin.

Quem gosta de consenso é juizado de pequenas causas. Só o Fla-Flu partidário nos tirará da infância política. Polarização já.

SÉRGIO DÁVILA é editor-executivo da Folha de SP.

Fonte: Folha de SP

ACRÉSCIMO: a polarização partidária não significa redução ou extinção do pluralismo político, na medida em que as disputas mais amplas do espectro político-ideológico seriam, ou deveriam ser, resolvidas no âmbito interno aos próprios partidos, como ocorre atualmente entre as correntes partidárias de algumas agremiações.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Saúde, educação e Dilma fazem Brasil subir em ranking de igualdade entre sexos

Em um ano, o Brasil saltou de 82º colocado para 62º no ranking de igualdade entre sexos (Global Gender Gap Index) do Fórum Econômico Mundial, a ser divulgado hoje em Nova York.

O avanço tem "duas razões-chave", de acordo com a diretora de Paridade de Gênero e Capital Humano da organização, a paquistanesa Saadia Zahidi: aumentou de 7% para 27% a proporção de mulheres ministras e, "é claro, a presidente Dilma Rousseff estava no poder neste último ano, o que também tem impacto no índice".

Outro fator é que o país, "de fato, acabou com a diferença de gênero tanto em saúde como em educação" ao longo dos últimos anos, dividindo agora o primeiro lugar com diversos outros países, em ambas as áreas.

O estudo, realizado anualmente desde 2006 por Zahidi e pelos professores Ricardo Hausmann, de Harvard, e Laura Tyson, de Berkeley, leva em consideração quatro categorias: saúde e sobrevivência; realização educacional; participação e oportunidade econômica; e fortalecimento do poder político.

Se por um lado avançou em aumento do poder das mulheres, com Dilma e ministras, e já vinha melhorando em saúde e educação, por outro o Brasil segue atrás em participação econômica.

Mais precisamente, em dois dos cinco indicadores que compõem a categoria: a participação na força de trabalho e a similaridade de salário.

No primeiro, "sobrevive uma grande diferença", com 64% das mulheres participando da força de trabalho, contra 85% dos homens. "Para um país onde mais mulheres se formam nas escolas, mais mulheres se formam nas universidades, é um desperdício de todo esse talento", critica Zahidi, 32.

No segundo indicador, diante da pergunta "Mulheres e homens recebem salários similares?", executivos brasileiros responderam que os rendimentos são "muito mais baixos" para mulheres, cerca de 52% dos rendimentos dos homens.

O ranking geral traz algumas surpresas, como a Nicarágua em primeiro lugar na América Latina e em nono no mundo ou a África do Sul em 16º no mundo. Segundo Zahidi, isso se deve ao fato de focar as diferenças entre os sexos, não o nível de desenvolvimento do país.

Ela destaca que, de modo geral, "o mundo está indo bem" na paridade de gênero em saúde em educação, mas nem tanto em empoderamento político e participação econômica, "áreas em que nem os países nórdicos acabaram com a diferença".

Fonte: Folha de SP

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

PRE-BA pede reforço de policiamento em Xique-xique durante eleições

O procurador Regional Eleitoral na Bahia, Sidney Madruga, pediu prioridade no policiamento das eleições em nove municípios do interior do estado, para prevenir episódios de violência relacionados com o pleito de domingo (7). Camaçari, Candiba, Gandu, Presidente Tancredo Neves, Riachão do Jacuípe, Santa Brígida, Santa Cruz da Vitória, Santo Antônio de Jesus e Xique-xique são alvos do pedido de reforço em ofícios enviados ao delegado geral da Polícia Federal, ao comandante geral da Polícia Militar e ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) durante a semana. As solicitações foram baseadas em relatos recebidos pelos promotores eleitorais das localidades, pela Procuradoria Regional Eleitoral (PRE) e pelo próprio TRE. Os ofícios foram encaminhados pelos promotores à procuradoria, que centralizou o pedido de reforços à Justiça Eleitoral, Polícia Militar e Polícia Federal.

Fonte: Bahia Notícias

terça-feira, 2 de outubro de 2012

A retórica do ódio na cobertura

Os brasileiros no exterior que acompanham o noticiário brasileiro pela internet têm uma impressão de que o país nunca esteve tão mal. Explodem os casos de corrupção, a crise ronda a economia, a inflação está de volta e o país vive imerso no caos moral. Isso é o que querem nos fazer crer as redações jornalísticas do eixo Rio-São Paulo. Com seus gatekeepers escolhidos a dedo, Folha de S.Paulo,Estado de S.Paulo,Veja e O Globo investem pesadamente no caos com duas intenções: inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e destruir a imagem pública do ex-presidente Lula da Silva. Até aí, nada novo. Tanto Lula quanto Dilma sabem que a mídia não lhes dará trégua, embora não tenham – nem terão – a coragem de uma Cristina Kirchner de levar a cabo uma nova legislação que democratize os meios de comunicação e redistribua as verbas governamentais para o setor. Pelo contrário, a Polícia Federal segue perseguindo as rádios comunitárias e os conglomerados de mídia Globo e Abril celebram os recordes de cotas de publicidade governamentais. O PT sofre da síndrome de Estocolmo (aquela em que o sequestrado se apaixona pelo sequestrador) e o exemplo mais emblemático disso é a posição de Marta Suplicy como colunista de um jornal cuja marca tem sido o linchamento e a inviabilização política das duas administrações petistas em São Paulo.

O que chama a atenção na nova onda conservadora é o time de intelectuais e artistas com uma retórica que amedronta. Que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso use a gramática sociológica para confundir os menos atentos já era de se esperar, como é o caso das análises de Demétrio Magnoli, especialista sênior da imprensa em todas as áreas do conhecimento. Nunca alguém assumiu com tanta maestria e com tanta desenvoltura papel tão medíocre quanto Magnoli: especialista em políticas públicas, cotas raciais, sindicalismo, movimentos sociais, comunicação, direitos humanos, política internacional... Demétrio Magnoli é o porta-voz maior do que a direita brasileira tem de pior, ainda que seus artigos não resistam a uma análise crítica.

Jornalismo lombrosiano

Agora, a nova cruzada moral recebe, além dos já conhecidos defensores dos “valores civilizatórios”, nomes como Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro. A raiva com que escrevem poderia ser canalizada para causas bem mais nobres se ambos não se deixassem cativar pelo canto da sereia. Eles assumiram a construção midiática do escândalo, e do que chamam de degenerescência moral, como fato. E, porque estão convencidos de que o país está em perigo, de que o ex-presidente Lula é a encarnação do mal, e de que o PT deve ser extinto para que o país sobreviva, reproduzem a retórica dos conglomerados de mídia com uma ingenuidade inconcebível para quem tanto nos inspirou com sua imaginação literária.

Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro fazem parte agora daquela intelligentsia nacional que dá legitimidade científica a uma insidiosa prática jornalística que tem na Veja sua maior expressão. Para além das divergências ideológicas com o projeto político do PT – as quais eu também tenho –, o discurso político que emana dos colunistas dos jornalões paulistanos/cariocas impressiona pela brutalidade. Os mais sofisticados sugerem que, a exemplo de Getúlio Vargas, o ex-presidente Lula se suicide; os menos cínicos celebraram o “câncer” como a única forma de imobilizá-lo. Os leitores de tais jornais, claro, celebram seus argumentos com comentários irreproduzíveis aqui.

Quais os limites da retórica de ódio contra o ex-presidente metalúrgico? Seria o ódio contra o seu papel político, a sua condição nordestina, o lugar que ocupa no imaginário das elites? Como figuras públicas tão preparadas para a leitura social do mundo se juntam ao coro de um discurso tão cruel e tão covarde já fartamente reproduzido pelos colunistas de sempre? Se a morte biológica do inimigo político já é celebrada abertamente – e a morte simbólica ritualizada cotidianamente nos discursos desumanizadores – estaríamos inaugurando uma nova etapa no jornalismo lombrosiano?

O espetáculo da punição

Para além da nossa condenação aos crimes cometidos por dirigentes dos partidos políticos na era Lula, os textos de Demétrio Magnoli, Marco Antonio Villa, Ricardo Noblat, Merval Pereira, Dora Kramer, Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes, Eliane Cantanhêde, além dos que agora se somam a eles, são fontes preciosas para as futuras gerações de jornalistas e estudiosos da comunicação entenderem o que Perseu Abramo chamou apropriadamente de “padrões de manipulação” na mídia brasileira. Seus textos serão utilizados nas disciplinas de deontologia jornalística não apenas como exemplos concretos da falência ética do jornalismo tal qual entendíamos até aqui, mas também como sintoma dos novos desafios para uma profissão cada vez mais dominada por uma economia da moralidade que confere legitimidade a práticas corporativas inquisitoriais vendidas como de interesse público.

O chamado “mensalão” tem recebido a projeção de uma bomba de Hiroshima não porque os barões da mídia e os seus gatekeepers estejam ultrajados em sua sensibilidade humana. Bobagem. Tamanha diligência não se viu em relação à série de assaltos à nação empreendida no governo do presidente sociólogo. A verdade é que o “mensalão” surge como a oportunidade histórica para que se faça o que a oposição – que nas palavras de um dos colunistas da Veja “se recusa a fazer o seu papel” – não conseguiu até aqui: destruir a biografia do presidente metalúrgico, inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e reconduzir o projeto da elite “sudestina” ao Palácio do Planalto.

Minha esperança ingênua e utópica é que o Partido dos Trabalhadores aprenda a lição e leve adiante as propostas de refundação do país abandonadas como acordo tácito para uma trégua da mídia. Não haverá trégua, ainda que a nova ministra da Cultura se sinta tentada a corroborar com o lobby da Folha de S.Paulo pela lei dos direitos autorais, ou que o governo Dilma continue derramando milhões de reais nos cofres das organizações Globo e Abril via publicidade oficial. Não é o PT, o Congresso Nacional ou o governo federal que estão nas mãos da mídia. Somos todos reféns da meia dúzia de jornais que definem o que é notícia, as práticas de corrupção que merecem ser condenadas e, incrivelmente, quais e como devem ser julgadas pela mais alta corte de Justiça do país. Na última sessão do julgamento da Ação Penal 470, por exemplo, um furioso ministro-relator exigia a distribuição antecipada do voto do ministro-revisor para agilizar o trabalho da imprensa (!). O STF se transformou na nova arena midiática onde o enredo jornalístico do espetáculo da punição exemplar vai sendo sancionado.

Coragem de enfrentar o monstro

Depois de cinco anos morando fora do país, estou menos convencido por que diabos tenho um diploma de jornalismo em minhas mãos. Por outro lado, estou mais convencido de que estou melhor informado sobre o Brasil assistindo à imprensa internacional. Foi pelas agências de notícias internacionais que informei aos meus amigos no Brasil de que a política externa do ex-presidente metalúrgico se transformou em tema padrão na cobertura jornalística por aqui. Informei-os que o protagonismo político do Brasil na mediação de um acordo nuclear entre Irã e Turquia recebeu atenção muito mais generosa da mídia estadunidense, ainda que boicotado na mídia nacional. Informei-os que acompanhei daqui o presidente analfabeto receber o título de doutor honoris causa em instituições europeias e avisei-os que por causa da política soberana do governo do presidente metalúrgico, ser brasileiro no exterior passou a ter uma outra conotação. O Brasil finalmente recebeu um status de respeitabilidade e o presidente nordestino projetou para o mundo nossa estratégia de uma América Latina soberana.

Meus amigos no Brasil são privados do direito à informação e continuarão a ser porque nem o governo federal nem o Congresso Nacional estão dispostos a pagar o preço por uma “reforma” em área tão estratégica e tão fundamental para o exercício da cidadania. Com 70% de aprovação popular e com os movimentos sociais nas ruas, Lula da Silva não teve coragem de enfrentar o monstro e agora paga caro por sua covardia. Terá Dilma coragem com aprovação semelhante, ou nossa meia dúzia de Murdochs seguirão intocáveis sob o manto da liberdade de e(i)mpre(n)sa?

***

[Jaime Amparo Alves é jornalista e doutor em Antropologia Social, Universidade do Texas, Austin]


Fonte: observatório da imprensa

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

MPF-DF pede arquivamento de investigação contra Lula

O Ministério Público Federal no Distrito Federal pediu o arquivamento das investigações sobre a conversa ocorrida entre o ex-presidente Lula e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Na conversa, segundo reportagem da revista Veja de maio deste ano, Lula teria oferecido “blindagem” na CPI do Cachoeira em troca do adiamento do julgamento do mensalão. A investigação foi iniciada em maio deste ano, a partir do pedido de parlamentares da oposição que acusavam Lula de coação no curso do processo, tráfico de influência e corrupção ativa.

Durante as investigações, o MPF enviou ao ministro Gilmar Mendes dois pedidos de informação, via ofício, que não foram respondidos. Sem a resposta, o MPF decidu analisar as entrevistas concedidas por Gilmar Mendes à imprensa para averiguar se houve a prática dos crimes apontados. Segundo o MPF, nas declarações dadas pelo ministro, não é possível detectar um pedido específico de Lula no sentido de ver adiado o julgamento do mensalão.

Após a repercussão da reportagem divulgada pela revista, o próprio Gilmar Mendes afirmou, em entrevista, que não houve um pedido específico do presidente em relação ao "mensalão". “Lula manifestou um desejo e eu disse da dificuldade que o tribunal teria, ele não pediu a mim diretamente”, disse ele.

Ouvido pelo Ministério Público, o advogado e ex-ministro do STF, Nelson Jobim, disse que testemunhou toda a conversa entre Lula e Gilmar Mendes e afirmou que “em nenhum momento o ex-presidente solicitou ou sugeriu ao ministro Gilmar que atuasse no sentido de obter o adiamento do julgamento do mensalão”. Ele acrescentou que “em nenhum momento o ex-presidente mencionou ter controle sobre a CPI do Cachoeira ou ter qualquer influência sobre seus trabalhos” e que “o ex-presidente apenas ouviu a conversa sobre o início do julgamento do mensalão, não tendo dela participado”.

Em nota à imprensa, publicada em maio, o ex-presidente Lula demonstrou estar indignado e alegou que a versão da revista sobre o teor da conversa mantida com o ministro Gilmar é inverídica. A investigação do Ministério Público sobre o caso não apontou conduta criminosa por parte de Lula.

O pedido de investigação havia sido assinado por Álvaro Dias (PSDB-PR), José Agripino Maia (DEM-RN), Rubens Bueno (PPS-PR), Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), Mendes Thame (PSDB-SP) e Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE).

Com informações da Assessoria de Imprensa da PRDF.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 27 de setembro de 2012

sábado, 22 de setembro de 2012

Partidos se unem em apoio a Lula

Seis partidos aliados ao governo acabam de divulgar nota em apoio ao ex-presidente Lula. Assinada pelos presidentes do PT, PSB, PC do B, PMDB, PDT e PRB, a nota diz que repudiam a ação de dirigentes dos partidos de oposição PSDB, DEM e PPS que, segundo eles, “tentaram comprometer a honra e a dignidade do ex-presidente Lula” e faz referência à matéria da Revista Veja, onde, segundo os partidos aliados, os oposicionistas “pretendem transformar em verdade o amontoado de invencionices colecionado a partir de fontes sem identificação”.

Na nota, os presidentes dos partidos comparam a situação de hoje ao que aconteceu no Brasil em 1954 e apontam que, naquela época denúncias sobre a existência de um “mar de lama” foram feitas pela oposição de então para afastar o então presidente Getúlio Vargas; e em 1964 quando as críticas da oposição levaram o Brasil ao golpe de 1964 e a uma ditadura que durou 21 anos.

- O que querem agora é reverter o processo de mudanças iniciado por Lula, que colocou o Brasil na rota do desenvolvimento e da distribuição de renda – diz a nota que foi divulgada seis dias depois de a Revista Veja chegar às bancas.

A íntegra da nota é a seguinte:

O PT, PSB, PMDB, PCdoB, PDT e PRB, representados pelos seus presidentes nacionais, repudiam de forma veemente a ação de dirigentes do PSDB, DEM e PPS que, em nota, tentaram comprometer a honra e a dignidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Valendo-se de fantasiosa matéria veiculada pela Revista Veja, pretendem transformar em verdade o amontoado de invencionices colecionado a partir de fontes sem identificação.

As forças conservadoras revelam-se dispostas a qualquer aventura. Não hesitam em recorrer a práticas golpistas, à calúnia e à difamação, à denúncia sem prova.

O gesto é fruto do desespero diante das derrotas seguidamente infligidas a eles pelo eleitorado brasileiro. Impotentes, tentam fazer política à margem do processo eleitoral, base e fundamento da democracia representativa, que não hesitam em golpear sempre que seus interesses são contrariados.

Assim foi em 1954, quando inventaram um “mar de lama” para afastar Getúlio Vargas. Assim foi em 1964, quando derrubaram Jango para levar o País a 21 anos de ditadura. O que querem agora é barrar e reverter o processo de mudanças iniciado por Lula, que colocou o Brasil na rota do desenvolvimento com distribuição de renda, incorporando à cidadania milhões de brasileiros marginalizados, e buscou inserção soberana na cena global, após anos de submissão a interesses externos.

Os partidos da oposição tentam apenas confundir a opinião pública. Quando pressionam a mais alta Corte do País, o STF, estão preocupados em fazer da ação penal 470 um julgamento político, para golpear a democracia e reverter as conquistas que marcaram a gestão do presidente Lula .

A mesquinharia será, mais uma vez, rejeitada pelo povo.

Rui Falcão, PT

Eduardo Campos, PSB

Valdir Raupp, PMDB

Renato Rabelo, PCdoB

Carlos Lupi, PDT

Marcos Pereira, PRB.



Fonte: Blog de Cristiana Lôbo

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

PNAD/IBGE mostra queda recorde de desemprego e redução de desigualdades

Fortes avanços sociais em termos de trabalho, renda e redução da desigualdade, registrados desde 2004 e associados ao governo Lula, continuaram a todo vapor no ano passado


Apesar de o crescimento da economia ter desacelerado para apenas 2,7% em 2011, os fortes avanços sociais em termos de trabalho, renda e redução da desigualdade, registrados desde 2004 e associados ao governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, continuaram a todo vapor no ano passado, primeiro do mandato de Dilma Rousseff. Este é o quadro que sobressai da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2011, divulgada ontem no Rio de Janeiro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os destaques foram a criação de 1 milhão de empregos em dois anos, a queda do desemprego para o recorde histórico de 6,7% e a redução da desigualdade em diversas medidas de renda num ritmo até superior à média de 2004 a 2009. A comparação mais curta que se pode fazer é com a Pnad de 2009, já que em 2010, por causa do Censo, a pesquisa não foi coletada. O aumento de postos de trabalhos em 2011 deveu-se, em parte, à recuperação a partir da forte queda em 2009, auge da crise global.

Mesmo com os ganhos de renda e trabalho, a Pnad mostrou que o avanço em algumas mazelas tradicionais do País continua lento. Em dois anos, a proporção de domicílios atendidos pela rede coletora de esgoto aumentou de 52,5% para 54,9%, e a de domicílios com fossa séptica ligada à rede coletora, de 6,6% para 7,7% - um ritmo que, se mantido, adiará por décadas a universalização do saneamento básico.

Na educação, apesar de a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade ter caído de 9,7% para 8,6% entre 2009 e 2011, a proporção de pessoas de 25 anos ou mais sem nenhuma instrução saltou de 13% para 15,1%, e o porcentual de jovens entre 15 e 17 anos na escola caiu de 85,2% para 83,7%. Em termos de posse de bens, houve um aumento muito rápido, de 39,8%, no número de domicílios com microcomputador e acesso à internet. Ainda assim, em 2011, quase dois de cada três lares brasileiros permaneciam sem esse equipamento básico da vida moderna.

A Pnad de 2011 mostrou que, em setembro do ano passado (quando foi feita a coleta de dados), havia 92,5 milhões de brasileiros trabalhando. O montante foi 1,1% maior do que o verificado na Pnad anterior, referente a 2009, ou o equivalente a 1,1 milhão de empregados a mais. Houve expansão na ocupação nas regiões Norte (3,7%), Sudeste (1,6%), Sul (0,8%) e Centro-Oeste (3,3%). Na contramão do resultado nacional, apenas a Região Nordeste verificou redução na população ocupada. A queda foi de 0,9% em 2011 em relação a 2009, mas puxada pela saída de jovens do mercado de trabalho.

A força de trabalho em 2011 correspondia 61,7% (o chamado "nível de ocupação") das pessoas com 15 anos ou mais da idade, a "população em idade ativa". Em 2009, a força de trabalho registrou 91,4 milhões de pessoas, com nível de ocupação de 62,9%. Apesar do crescimento de 1,05 milhão de postos de trabalho entre 2009 e 2011, a população em idade ativa cresceu bem mais, de 145,3 milhões em 2009 para 149,8 milhões em 2011. Isso explica o recuo do nível de ocupação.


Fonte: Estadão

Ps: está aí um governo que, mais do que saber fazer o bolo da economia crescer, sabe dividir esse bolo entre ricos e pobres! Essa é a diferença entre a Direita e a Esquerda na política brasileira.

domingo, 16 de setembro de 2012

A margarida e o egoísmo

Hoje é domingo e merecemos um pouco de arte. Segue um bom texto escrito Paulo Coelho, talvez uma feliz metáfora para o momento histórico por que atravessa nossa cidade. Apreciem.


“Sou uma margarida num campo de margaridas”, pensava a flor. “No meio das outras, é impossível notar minha beleza”.
Um anjo escutou o que ela pensava, e comentou:
- Mas você é tão bonita!
- Quero ser única!
Para não ouvir reclamações, o anjo a transportou até a praça de uma cidade.
Dias depois, o prefeito foi até lá com um jardineiro, para reformar o local.
- Aqui não tem nada que interessa. Revirem a terra e plantem gerânios.
- Um minuto! – gritou a margarida. – Assim vocês vão me matar!
- Se existissem outras como você, poderíamos fazer uma bela decoração – respondeu o prefeito. Mas é impossível encontrar margaridas nas redondezas, e você, sozinha, não faz um jardim.
Logo em seguida arrancou a flor.


Fonte: http://g1.globo.com/platb/paulocoelho/2012/09/16/a-margarida-e-o-egoismo/

sábado, 15 de setembro de 2012

A longa tradição das “entrevistas” inventadas

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 04/09/2012 na edição 710. Fonte: Observatório da Imprensa

Uma revista publica um pingue-pongue – entrevista em formato de perguntas e respostas – com um jornalista que imediatamente denuncia em seu blog o “engodo”, porque não teria dado entrevista alguma; a revista responde reafirmando a autenticidade do texto e tudo fica por isso mesmo, a palavra de um contra a da outra.

Foi na semana passada. A edição 2284 da Veja Rio, que começou a circular no domingo (26/8), trazia, na coluna “Beira Mar”, uma suposta entrevistacom o colunista esportivo Renato Maurício Prado, do Globo, sobre o fim de seu contrato com a SporTV, depois de uma discussão ao vivo com o apresentador Galvão Bueno, durante um programa de debates nos últimos Jogos Olímpicos.

Já na terça-feira (28), na nota “Pingo nos is”, ao pé de seu blog, reproduzida no dia seguinte em sua coluna no caderno de Esportes do jornal impresso, Renato afirmava que não dera entrevista: teria apenas atendido ao telefonema da repórter e explicado que não queria falar, “até por entender que nós, jornalistas, não somos notícia”. Ressaltava inclusive um erro na menção à sua participação num programa de rádio, já extinto havia mais de dois anos, e lamentava a utilização de uma foto sua, feita para sua coluna no Globo, pois, para o leitor, ficava a impressão de que ele teria posado para Veja.

Em nota oficial, publicada na quinta-feira (30/8), a revista rejeitava o desmentido.

O que se diz no contestado pingue-pongue não tem qualquer relevância para além do previsível noticiário sobre “celebridades e personalidades do Rio”, que é o tema dessa seção da revista. A questão do método, sim, é que é de extrema relevância, independentemente do assunto, da importância das fontes ou da parcela do público a que se destina esse tipo de informação. Ou fraude.

A farsa da reportagem

Não é de hoje que Veja é criticada por utilizar artifícios estranhos aos mais elementares princípios éticos do jornalismo. Entre eles, a descontextualização, ou mesmo a pura e simples invenção de declarações. Recordo aqui, apenas para ilustrar, um caso de grande repercussão ocorrido há pouco mais de dois anos: o texto intitulado “A farra da antropologia oportunista“, publicado em maio de 2010, que acusava pesquisadores de forjar a existência de comunidades indígenas ou quilombolas em proveito próprio – das ONGs das quais participavam – e em detrimento das perspectivas de desenvolvimento do país. Para tanto, utilizava supostas afirmações de dois antropólogos, Mércio Pereira Gomes e Eduardo Viveiros de Castro, que argumentariam no sentido pretendido pela revista.

A farsa da reportagem foi denunciada em pelo menos três artigos neste Observatório (ver “Como demonizar populações vulneráveis“, “Reflexão sobre ‘espertinhos’ e ‘espertalhões’“ e “Dados fantasiosos, informações deformadas“) e na resposta do professor Gomes (“Resposta a uma matéria falsa“), que recusava à Veja “o falso direito jornalístico” de atribuir-lhe “uma frase impronunciada e um sentido desvirtuante” daquilo que pensava sobre a questão indígena brasileira.

O protesto de Viveiros de Castro também circulou amplamente pela internet e provocou uma troca de mensagens entre ele a revista (ver aqui), na qual ficava evidente a inexistência de entrevista e a deturpação dos argumentos do pesquisador, retirados de um artigo seu.

O mais curioso é que Veja concluía sua resposta dizendo que o antropólogo a havia autorizado a utilizar o tal artigo “da forma que bem entendesse”. O que, a rigor, jamais poderia ocorrer, porque evidentemente nenhum texto pode ser utilizado de qualquer jeito: precisa ser citado de acordo com a sua própria coerência interna, conforme o contexto em que foi escrito.

O elogio da fraude

Criada em 1968 por Mino Carta, Veja passou por uma série de mudanças ao longo dessas mais de quatro décadas, e só um estudo detalhado poderia apontar o que a levou a se distanciar progressivamente da prática rigorosa do jornalismo para enveredar por uma política editorial que pretende amoldar a realidade às suas pautas, utilizando quaisquer recursos para a obtenção dos resultados previamente definidos. O recente episódio que envolveu o colunista esportivo seria, portanto, apenas uma derivação social e politicamente irrelevante de um processo incorporado há muito tempo.

Entretanto, nesse processo há um aspecto essencial e aparentemente inocente que deveria chamar a atenção, sobretudo de jovens aspirantes a jornalistas, especialmente agora que a discussão a respeito da adequada formação retorna, com o debate sobre a exigência do diploma universitário: é que as regras elementares do método jornalístico não são tão elementares assim. Pois que mal faz inventar entrevistas, desde que elas sejam simpáticas às fontes?

Em Notícias do Planalto, lançado em 1999 e prestes a ser reeditado, Mario Sergio Conti relata a esperteza de Elio Gaspari, então em início de carreira:

“[Gaspari] estava numa agência de notícias no Galeão. O aeroporto era o ponto de passagem dos poderosos da República. Os políticos, ainda em trânsito da antiga para a nova capital, embarcavam nos voos matutinos para Brasília. No Galeão desembarcavam as celebridades estrangeiras que visitavam o Rio. Como se podia entrar na área da alfândega, os jornalistas circulavam e faziam entrevistas. Os repórteres da agência tinham de falar com os passageiros famosos, redigir as matérias na sala de Imprensa, tirar cópias num estêncil a álcool e mandá-las para os jornais. Gaspari logo constatou que o tempo médio de embarque e desembarque, vinte minutos, era escasso. Enquanto entrevistava um deputado, perdia outros três que entravam no avião para Brasília. Passou a acordar de madrugada para ler os jornais e, com base neles, escrever pequenas entrevistas de políticos comentando os assuntos do dia. Se concordavam com as respostas, passavam a ser os entrevistados de fato e de direito. Assim, podia mandar aos jornais três, quatro entrevistas, em vez de uma. Os entrevistados agradeciam porque, além de estarem nos jornais, às vezes pareciam mais inteligentes ou engraçados do que realmente eram.”

Esses políticos jamais poderiam sonhar que algum dia lhes cairia no colo um assessor tão bom, e ainda por cima gratuito. Conti prossegue, muito divertido:

“Em Veja, o método foi refinado e usado anos a fio. Gaspari inventava um raciocínio para avivar uma matéria, geralmente de madrugada, no calor do fechamento, e mandava um repórter achar alguém famoso que quisesse assumir a autoria. A frase “O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual” nasceu assim, proposta por Gaspari ao carnavalesco Joãozinho Trinta. O truque era puro Elio Gaspari. Tinha algo de molecagem, mas ficava nos limites das normas jornalísticas, na medida em que ninguém era forçado a encampar uma declaração. O seu fim último era levar um fato novo ao leitor (...)”. (grifo meu).

Então ficamos assim: inventar declarações e atribuí-las a terceiros faz parte das normas jornalísticas, desde que sejam favoráveis a essas fontes. Nada impede, tampouco, que se recorte um artigo e nele se insiram perguntas, para dar a impressão de um pingue-pongue. Terão razão, afinal, certos teóricos que dizem que jornalismo é ficção?

Essas coisas as escolas – pelo menos, as escolas de qualidade – não ensinam. Pelo contrário, refutam e denunciam. No entanto, renomados jornalistas – nos quais, naturalmente, muitos jovens se miram – praticam e enaltecem o que deveriam combater. E a fraude só causa revolta quando contraria os envolvidos.

Mas nem por isso deixa de ser o que é.

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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]